O Natal aí está. Essa época que para muitos é o momento da suprema hipocrisia. Durante 24 horas, ou talvez 48, os sorrisos são forçados, os sentimentos são de plástico e a gentileza, se merece o nome, não consegue esconder completamente a profundidade do ressentimento contra amigos ou familiares.
Nada tenho contra a hipocrisia, aviso já. Sem ela, a vida em sociedade seria impensável —até Kant, que era Kant, sabia disso.
Mas será que os mortais ainda se lembram do sorriso franco, dos sentimentos limpos e de uma gentileza genuína? Será que sentem saudades?
Para esses nostálgicos, aconselho o filme "A Menina Silenciosa", de Colm Bairéad, inspirado no livro "Foster" de Claire Keegan. Sempre ajuda a recuperar a memória.
É o meu filme do ano, para usar a linguagem gasta dos balanços jornalísticos, talvez por ser um daqueles raros filmes que se aproxima da pura poesia.
A história é simples, ou parece simples: Cáit (espantosa Catherine Clinch) é uma criança de nove anos que sobrevive (é o termo) numa família que a ignora e despreza.
O seu método de sobrevivência é o silêncio, a quietude e a observação. Para usar uma palavra clássica, vinda do português antigo, Cáit é uma "enjeitada". A mãe é uma figura exausta e ausente. O pai alcoólatra tem a delicadeza própria das bestas. E as irmãs mais velhas são espectros sem rosto e sem voz.
Mas então os pais, que esperam uma nova criança e não têm tempo ou disponibilidade para Cáit, decidem enviá-la para casa de Eibhlín e Seán, familiares distantes, só para passar o verão. Cáit, a quem nada é perguntado, é assim levada para um ambiente estranho.
Decisão milagrosa. Eibhlín e Seán acolhem-na e, logo nos primeiros momentos, entendemos que algo mudou. Uma diferença nos gestos, digamos assim. Gestos de quem cuida.
Naquele verão, Cáit conhece essa coisa extraordinária: uma família, partilhando com ela as suas alegrias e tristezas, as suas rotinas, as suas conversas. Lentamente, a "menina silenciosa" vai saindo do seu casulo, permitindo-se falar, sentir, abraçar.
"A Menina Silenciosa" é um filme revolucionário por tratar do mais revolucionário dos temas: a bondade humana.
Não é uma daquelas virtudes mentirosas para ser exibida nas redes sociais e que apenas serve para alimentar a vaidade do suposto virtuoso.
Também não é uma mera proclamação ideológica, abstrata, ideal, própria de quem ama a humanidade, mas despreza o ser humano comum.
Como lembrava Emmanuel Levinas, a bondade é uma virtude interpessoal. Ela só acontece face a face, perante o rosto do outro, perante a presença de outra pessoa. A bondade nada exige, nada espera, nada impõe. É pura hospitalidade. É abertura e reconhecimento.
E, como no filme, talvez seja um dia reciprocidade.
Desejo um Natal bondoso para os meus leitores.
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