quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Aproximar ou inserir, Eudes Quintino de Oliveira Júnior, in APMP (crônicas)

 

 

Quando o ano chega ao seu final é hora de fazer a faxina interna. Recomenda-se vasculhar todos os cantos da moradia – como se fosse uma verdadeira devassa no interior, um processo de despejo coletivo, procurando expurgar os fantasmas persistentes e outros incômodos moradores, que ali habitam como posseiros. Nestas horas coloca-se em ação a memória, que muitas vezes prega seus inexplicáveis deslizes, tal como esquecer de cuidar da flor guardada há tanto tempo e que hoje nada mais resta do que uma poeira de pétalas. Faz lembrar e até dar razão para Gabriel Garcia Márquez quando solenemente profetizou que “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.

Aquilo que foi alcançado nada mais é do que o resultado da dedicação de cada um, devendo ser preservado no interior de uma concha protetora e mantido como um troféu, representando a conquista de um elevado projeto de vida. Daí é que nasce o criador, o idealizador, o vitorioso. Aquele que não entope de promessas os ouvidos carentes, mas preenche e sacia o vazio do coração e do corpo.

O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos que o cercam, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver.

Assim, nesta pirâmide ascendente - pois o homem é vocacionado para conquistas e glórias apesar de sua efêmera existência – continua sendo ele o personagem principal desta aventura maravilhosa chamada vida. E a cada ser humano, portanto, responsável que é pelo espírito corporativo, são dirigidos os votos para a edificação do altruísmo coletivo.

Dois verbos utilizados no linguajar da economia tiveram perfeita adequação e assimilação pelos consumidores, que ficaram gravados de forma indelével, principalmente neste ano que se finda, até mesmo por aqueles desconectados da Última Flor do Lácio: aproximar ou inserir. Falo aqui da movimentação do cartão para o pagamento na máquina apropriada. Tão pequena como o cartão magnetizado. Mas ambos se entendem quando estão cara a cara e a operação, quase sempre, é realizada com sucesso, a não ser quando há a intromissão da inteligência artificial.

Mas, voltando aos dois verbos, que determinam a realização da operação, a língua portuguesa é tão rica e tão envolvente que, por mais que expresse a palavra, no caso o verbo, não consegue retirar dela todo o seu conteúdo, pois, de tão ampla, torna-se difusa. Não se trata de brincar com as palavras utilizando, para tanto, não só o significado, mas também a linguagem de revelação, que é o local indicado na máquina para identificar o cartão. Uma coisa é a linguagem da máquina, a outra a humana.

Assim, o verbo aproximar (appropinquare), do latim, assume o significado de avizinhar-se, permitir o acesso, acercar-se, aconchegar, trazer o próximo para mais perto de você, encurtar a distância e relacionar-se com ele.

Enquanto que inserir, por sua vez, também de raiz latina (inserere), tem o significado de fixar-se, incorporar, entrar dentro de, fazer com que algo atinja seu interior, misturar-se com alguém de forma amistosa, ter uma correspondência cordial, engajar-se, comprometer-se, empenhar-se com o outro.

Como estamos em um momento para reetiquetar a vida, fica fácil a formulação de votos de um ano novo com mais aproximação e inserção.

 

Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, advogado.

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