Dias atrás, quando o Congresso agia contra os povos originários, impôs-se à memória um evento expressivo de meados dos anos 80. Mário Juruna, primeiro indígena eleito deputado federal, num recesso na Câmara, levou a visitá-la um grupo de xavantes, com suas flechas e bordunas. No recinto vazio exceto por alguns curiosos, o parlamentar e militante tomou a tribuna e discursou em xavante. Uma incógnita o que disse, mas a pequena plateia vibrou, agitando maracás.
Acontecimento sugestivo, pois soava como simbólica a ocupação daquele espaço por uma representação inédita de povo e língua originários. Afinal, na época, a ditadura militar estava matando um terço dos indígenas do Amapá. Pouco importava o dito, o gesto coletivo excedia qualquer restituição semântica de palavras, como se nele mesmo, sem um significado imediato disponível, o observador presenciasse a tomada de posse ritualística do Legislativo pelos filhos espirituais da terra. Juruna fazia todo o sentido.
Já pouco sentido fazem hoje deputados na tribuna, exceto para as bolhas que compartilham a retórica ventilada. Sem debates relevantes, decisões são tomadas nos bastidores por líderes de bancadas. Ao microfone, o orador fala como uma televisão em fundo de sala: ouve-se o som, nada se escuta, mas o funcionamento do aparelho é um rito. No âmbito doméstico, tranquiliza os pets.
No entanto, é necessário falar para esconder o silêncio dos eleitores, cuja voz não chega até ali: sem representatividade real, a nação é politicamente silente. Delegados exclusivos dos partidos, os parlamentares são meros peões no xadrez das emendas orçamentárias, quando não estão fazendo turismo aéreo.
Isso seria normal se houvesse sequer a presunção de utilidade construtiva dos bilhões gastos. A realidade, entretanto, é que, úteis ou não, apenas visam à reeleição dos autores de emendas, reforçando o coronelato local. Novidade: por pix, a grana chega rápido. A Câmara é um bunker de assalto ao Orçamento, cargos lucrativos e terras indígenas. E a estratégia implícita na luta pela verba do "fundão" partidário é chegar à grandeza indefinida, sem teto nem chão.
O semiparlamentarismo pirata que emergiu do passado presidencialismo, não de coalizão, mas de colisão e deboche, quer permanecer como um abscesso de poder, definido por abuso de prerrogativas e ameaças.
Seria o momento de a ciência política explorar a noção gramsciana de "espírito de sistema" para jogar alguma luz sobre a relação obscura entre o espírito de crise da representação e um agregado legislativo que não representa sequer a si mesmo, apenas obedece a um cacique sem plumas. Juruna faz falta. Nessa crise da voz, a presença de outras línguas no plenário marcaria um ponto forte e autêntico de inflexão civil.
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