segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Não estamos equipados para tanta complexidade, Suzana Herculano-Houzel, FSP

 

O mundo está indo para o ralo. Democracias quebradas, liberalismo econômico que só atende aos mais ricos, extremos de temperatura e clima, cada vez mais desinformação e desigualdade inclusive em como se faz ciência (eu volto a isto na próxima coluna, prometo). Por quê? Eu me atrevo a arriscar uma resposta bastante simples: a complexidade galopante do mundo que estamos criando hoje excede em muito o tempo que temos disponível para aprender a lidar com ela.

Ilustração de Aureliano Medeiros mostra, num fundo vermelho, mulher vestida de azul, rodeada de equipamentos: celulares, telefone antigo, caderno, caneta, bloco de anotações e cartões
Ilustração Aureliano Medeiros

Vejo o problema nas portas que deixamos se fecharem a torto e a direito exatamente porque perdemos o controle da velocidade em que geramos aquilo que um dia trouxe novas oportunidades àquela que, olhando para trás, chamamos de nossa espécie: tecnologia. Falo da tecnologia de maneira geral, que colocou em movimento a bola de neve do nosso destino ao transformar em polpa alimentos até então duros e difíceis de comer e nos dar o presente mais valioso de todos: tempo livre.

Por definição, tecnologia é tudo aquilo que gera tempo livre para fazer outras coisas e usar nossos neurônios criativamente. No caso da história humana, a tecnologia tem sido triplamente transformadora porque mamíferos com mais neurônios (cortesia número um da tecnologia) têm cada vez mais capacidade de resolver problemas aqui e enxergar novos ali (cortesia número dois) e vidas cada vez mais longas para continuar enxergando e resolvendo problemas (cortesia número três).

Elefantes têm um monte de neurônios, mas comem grama, então sua realidade é não ter tempo para nada além de comer o dia todo. Humanos, ao contrário, são aqueles primatas que inventaram truques para comer a energia de que precisam mais rápido, e assim foram ficando ao mesmo tempo mais capazes tanto de facilitar sua própria vida quanto de... complicá-la.

A razão é exatamente a mesma que explica nenhum adulto ainda gostar de jogo da velha ou damas: o que era dificuldade, mas a gente aprendeu a resolver rápido, não tem mais graça nenhuma, porque o esforço não vale mais a pena quando não há nada de novo ali para ser aprendido. Por isso, o que todo animal quer é sarna para se coçar.

O problema é que, para o animal humano, a sarna que a gente quer coçar é a própria tecnologia. Como aprender a usar a da vez é necessário e divertido, usamos o tempo livre de que dispomos graças à tecnologia para criar e usar... ainda mais tecnologia. Nossa história moderna é a bola de neve resultante dessas conquistas que se retroalimentam —e que agora está virando uma avalanche que cada vez menos gente dispõe das habilidades para entender.

Interromper a avalanche, ou ao menos mitigar seu estrago, exige cidadãos que aprendam a fazer bom uso do tempo livre que a tecnologia lhes dá: cidadãos que usem esse tempo para olhar para trás, olhar ao redor e um ao outro, para aprender a lidar com a complexidade de várias verdades contraditórias do mundo moderno e, sobretudo, para se manterem inteligentes. Pois inteligência é a capacidade de agir para manter portas abertas, e nossa incapacidade crescente de lidar com um mundo cada vez mais complexo torna a humanidade burra, tomando decisões que fecham portas para o seu próprio futuro —exatamente como o mau uso da tecnologia que um dia nos tornou humanos hoje apenas nos torna gordos.


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