A mínima de quarta-feira (27) foi quase a máxima de quinta nos termômetros de São Paulo; leões-marinhos foram fotografados em calçada alagada no Rio Grande do Sul; mais de cem botos cor-de-rosa morreram em rios sem oxigênio na seca histórica que assola a Amazônia. O apocalipse climático se materializa no país, como em quase todas as partes do mundo, no ano do verão sem fim, aquele que ainda chegará aos trópicos e já apavora.
Em menos de 24 horas, a Folha publicou duas reportagens de serviço sobre ar-condicionado, como comprar, como instalar, como economizar. Em nenhuma delas se ponderou que o consequente aumento no consumo de energia alimenta o ciclo que no fim das contas aquece o planeta e compromete seus ritmos. O refresco de hoje liga o forno de amanhã.
Eduardo Leite foi a Lula pedir ajuda para seu estado assolado por enchentes com a previsão do tempo na mão. O título do jornal, porém, destacou Janja, que é muito mais assunto que a desgraça gaúcha.
Sim, a Folha fala da crise em boas reportagens: 40% das capitais brasileiras tiveram inverno mais quente da história; total de afetados por chuvas em 2022 é o maior em dez anos. Porém a questão é a sinapse, trazer o problema para perto dos leitores. Não dá para escrever que a capital paulista tem cinco dias seguidos de temperaturas recordes e que o problema é "um bloqueio atmosférico causado pela persistência de um sistema de alta pressão atmosférica sobre uma grande área por vários dias consecutivos". Para além da repetição de termos, falta o quadro maior, as razões e, por que não, as dúvidas sobre tantos extremos.
Seria bom também trazer os responsáveis para a discussão. Há duas semanas, o chefe global da JBS foi entrevistado em evento do jornal The New York Times em Nova York. A newsletter sobre clima do diário americano (a Folha ou qualquer outro grande da imprensa brasileira tem uma newsletter sobre clima?) narrou o encontro com uma série de dados que o executivo por óbvio contesta: emissões superiores às de um país como a Itália, na mira de ativistas que querem impedir que a empresa alcance a Bolsa americana, recomendação do Conar local para que pare de prometer em peças publicitárias que alcançará o "net zero", zerar as emissões líquidas, até 2040. Uma busca sobre a JBS em textos recentes na Folha revela outro planeta: a empresa é responsável por 2% do PIB brasileiro, diz a Fipe.
"Ministro do Brasil diz que ambições de petróleo e verde não são contraditórias", escreveu na quarta-feira (27) o Financial Times, em texto pouco favorável ao governo Lula. No mesmo dia, a pergunta para Alexandre Silveira aqui é se vai ter ou não horário de verão.
Um último exemplo. A Folha relatou que a bancada do agronegócio pressionava o governo para liberar o seguro rural diante de tantas catástrofes (não só pressionava como obstruiu a pauta da Câmara até conseguir liberação de verba). Alguém questionou o bloco sobre a maior frequência de quebras de safras e a evidente relação com a crise climática, tão contestada pelo setor?
Não, não é assunto, não dá audiência e, como afirmou um leitor que desistiu da Folha, a verdade é que estamos todos fritos, pois ninguém vai desligar o ar-condicionado, deixar de comer bife, passar o trator ou buscar royalties. Ainda que inglória, é tarefa da mídia apresentar a conta indigesta da brincadeira. Esta última semana foi uma grande oportunidade perdida. Pelo andar da carruagem, não faltarão outras muitas.
QUESTÃO DE QUERERES
Reinaldo Azevedo saiu da Folha. Ou foi saído. "Não é por falta de leitores, sabemos todos", espetou o jornalista no último parágrafo de sua última coluna. "Não é incomum que haja mudanças entre os titulares que escrevem na Folha", afirmou a Secretaria de Redação em mensagem a leitores que se queixaram da mudança. "Como ele afirmou em sua última coluna, houve uma decisão para que deixe de escrever coluna no jornal, onde ficou por quase dez anos e contribuiu para o pluralismo do Projeto Folha. Ele segue colaborando no UOL, portal dos mesmos grupos empresariais."
Para quem tem memória mais larga, é curioso escrever que a saída de Reinaldo contribui para a propalada percepção de "endireitamento" da Folha, processo que teria se acelerado com o advento de um novo governo petista.
No ano passado, a coluna do ombudsman criticou a iniciativa do jornal de criar uma métrica ideológica para classificar partidos. Algo parecido se dá agora com um autoteste de orientação política ofertado na série O Futuro da Esquerda (a coisa mais lida do pacote até aqui, mas condenada por alguns leitores). O maniqueísmo emulado das redes sociais se repete. Faça o teste usando como guia as opiniões proferidas pela Folha em seus editoriais. Diz muito sobre o teste e, é claro, sobre o jornal.
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