O artigo "Ser rico não é pecado", publicado no último sábado (2) na Folha, buscou reabilitar a imagem dos super-ricos diante da opinião pública. Cometendo erros conceituais econômicos (diferença entre renda e riqueza) e bíblicos (camelos passando por agulhas...), o texto trouxe uma apologia indigesta à plutocracia.
Mais importante do que o conteúdo do texto é sua motivação: a previsão de isonomia tributária dos fundos exclusivos com o restante dos fundos de investimento. Cerca de 3.000 pessoas investem, pelo menos R$ 10 milhões, nessas versões domésticas dos paraísos fiscais de além-mar (offshore). Juntos, esses heróis sem capa estacionam R$ 966 bilhões nesses fundos, isentos de qualquer imposto, em contraste com o resto dos investidores em fundos, tributados semestralmente (come-cotas).
Há milênios a imunidade tributária é símbolo de distinção social. A mera isonomia tributária é vista como opressão, ao rebaixar o status social dessa minoria abastada (e autoexilada no exterior): não porque perderá dinheiro (isso não ocorrerá, acredite!), mas por ter seus privilégios reduzidos —do latim, "privus" (privado) e "lex" (lei). É uma questão de identidade.
A retórica de serviços prestados à sociedade, vestida de meritocracia, busca racionalizar e justificar o corporativismo desavergonhado da plutocracia. Isso é uma tendência global.
Consulta ao aplicativo Ngram, do Google, mostra a substituição do termo plutocracia nos livros em língua inglesa a partir de 1958, quando o termo meritocracia é criado pelo sociólogo britânico Michael Young ("The Rise of Meritocracy"), para expressar o avanço das agendas de igualdade de oportunidades e de antidiscriminação.
Ironicamente, a difusão da crença meritocrática ofereceu escudo moral à concentração de poder econômico e político nos super-ricos. Por exemplo, a CPI da fraude da Americanas não convocou os responsáveis para depor e terminou sem apontar culpados. Afinal, o trio Lemann-Telles-Sicupira (da 3G Capital) tem passe livre para acumular patrimônio à custa da boa governança corporativa (o trio enriqueceu R$ 6 bilhões enquanto arruinava as Lojas Americanas).
Ao tratar do desaparecimento da classe média nos EUA ("The vanishing middle class"), Peter Temin mostrou como a crença meritocrática normaliza a desigualdade, bloqueando a democratização das oportunidades na economia de mercado. Michael Sandel expõe como "A Tirania do Mérito" difunde ressentimentos sociais que ameaçam as democracias liberais no Ocidente. Meritocracia é distopia!
Em artigo de 2019, Jonathan Mijs, da London School of Economics, destacou o "paradoxo da desigualdade": a desigualdade socioeconômica eleva a tolerância dos cidadãos aos seus efeitos. Nos países desenvolvidos, a situação socioeconômica é majoritariamente atribuída a decisões pessoais, não às desigualdades estruturais (como as imunidades tributária e judiciária aos mais ricos).
A estratificação social impede que as pessoas experimentem diretamente a desigualdade. Em países altamente estratificados, os indivíduos percebem menos desigualdade de rendimentos no seu local de trabalho, bairros e redes sociais. A segregação molda a compreensão da sociedade a partir de uma posição de isolamento social. Injustiça invisível não causa indignação.
A desigualdade internaliza a crença meritocrática e enfraquece a democracia efetiva. No Brasil, os super-ricos defendem a educação para superar as desigualdades, mas se negam a financiar permanentemente a educação pública (a isenção de lucros e dividendos se liga à defesa de cobrança de mensalidades em universidades públicas). Criam camarotes educacionais altamente lucrativos, reproduzindo a segregação que renova o status social de seus herdeiros.
Evocando Cazuza: a luta por justiça tributária revela "esta festa pobre que os homens armaram pra nos convencer a pagar sem ver" pelos privilégios de poucos.
"Brasil... mostra a tua cara."
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