Bruno Cavalcanti
Em 1954, durante uma das sessões da comédia "Negócios de Estado", do francês Louis Verneuil, no TBC, Tônia Carrero, então com 32 anos de idade, seguia as marcas do encenador polonês Zbigniew Ziembinski escrevendo num pedaço de papel anotações ditadas a sua personagem, Irene, enquanto a cena se desenvolvia.
A atriz aproveitava para registrar sentimentos e impressões das sessões do espetáculo, de seus colegas de cena, da reação da plateia, da presença de amigos e de figuras intimidadoras, como a crítica de teatro Bárbara Heliodora, que assistiu à produção mais de uma vez.
"Por que ela veio ver essa peça de novo?" "A plateia hoje está tão fria, quase não riem." "O prefeito da cidade veio nos ver hoje, não sei por quê." Essas, entre muitas outras anotações, foram reunidas por um dos contrarregras da produção que, na década de 1990, presenteou a artista com uma pasta contendo todos os manuscritos.
Essas notas estão entre os materiais inéditos que fazem parte da "Ocupação Tônia Carrero", que chega ao Itaú Cultural neste sábado e marca a 56ª edição do projeto, que já homenageou nomes como os colegas de geração da atriz Lima Duarte, Laura Cardoso, Sérgio Britto, José Celso Martinez Corrêa e Nelson Rodrigues, além de figuras como Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Nise da Silveira, Lia de Itamaracá, entre muitos outros.
O tributo à história de Carrero chega como carro-chefe às comemorações do centenário da artista, que nasceu em 23 de agosto de 1922. Ela saiu de cena em 2018, aos 95 anos, vítima de uma parada cardíaca. Quando morreu, já estava aposentada havia pelo menos uma década.
Sua última aparição foi em "Chega de Saudade", filme de Laís Bodanzky que marcou sua despedida no mesmo meio que deu a ela o primeiro trabalho profissional, em 1947, no filme "Querida Susana". Poucos anos depois, Carrero se tornaria a grande estrela do cinema nacional ao protagonizar longas dos estúdios Vera Cruz, que a eternizaram como uma das atrizes mais bonitas de sua geração.
Folclórica, sua beleza abriu muitas portas a ela, como fazia questão de frisar, e rendeu uma série de mitos, entre eles o de que sua silhueta foi a inspiração para a imagem estampada nas moedas que rodavam no Brasil na década de 1950. A Casa da Moeda nunca confirmou a informação.
Entretanto, o tópico beleza está longe de ser o ponto principal da exposição que celebra a trajetória da atriz. Sua figura política, sim, entra em cena. Pouco conhecida, mas muito viva, a militância de Carrero nunca esteve ligada a partidos, mas foi a artista a responsável por bater de frente com a censura e negociar diretamente em Brasília para que Plínio Marcos tivesse liberada sua peça "Navalha na Carne", de 1967. A montagem foi um divisor de águas na carreira da atriz, do dramaturgo e de todo o elenco, que tinha ainda um jovem e iniciante Sérgio Mamberti.
"Desenhamos alguns eixos e escolhemos passagens de cinema, TV e teatro para jogar luz", afirma Carlos Gomes, um dos organizadores da exposição. "A partir disso, entendemos que a beleza já foi bastante esmiuçada, então buscamos outras camadas e encontramos essa mulher que escolhe o teatro no momento em que ser atriz não era nada bem-visto pela sociedade. E escolhe, dentro do casamento, seguir com a profissão, dando um recado forte à sociedade conservadora. Ela desafiou padrões para exercer a vocação e o desejo."
A ideia foi mostrar também a forma que a vida dela se relaciona com a história da TV e do moderno teatro brasileiro. Nos palcos, a atriz construiu uma carreira repleta de pontos marcantes, chegando a rivalizar com Cacilda Becker no TBC e ter conseguido plateias lotadas, que geraram um ciúme na grande estrela das artes cênicas, potencializado pelo relacionamento de Carrero com o ator e diretor Adolfo Celi, então companheiro de Becker.
"Eu e Cacilda fomos inimigas apaixonadas", declarava. A rivalidade ficou para trás quando, anos depois, já casada com o produtor César Thedim, Carrero declarou que gostaria de ter sido Cacilda. A veterana riu e a dupla seguiu às boas até a morte da atriz em 1969, durante o intervalo do clássico "Esperando Godot", dividido com seu então ex-marido Walmor Chagas, com quem Carrero compartilharia a cena 30 anos depois.
Nem as paixões, nem as brigas estão de fora da exposição, que mostra entrevistas, fotografias, vídeos, diários, declarações e notas da atriz. Não houve censura. "Nem faria sentido", afirma Luisa Thiré, neta de Carrero, idealizadora e uma das organizadoras da mostra.
"Minha avó foi muito corajosa e sempre lutou muito, abriu muitas portas para discussões sobre os direitos da mulher, sobre a luta pelo feminino. Ela brigou com a família inteira para fazer teatro e deixou a semente da arte em todas as pessoas da família que ela criou. Ela deixa para todo mundo um exemplo muito digno de artista, de mulher, de pessoa pública que lutou pela democracia, que correu atrás de igualdade, que sempre teve um olhar para o outro", afirma.
Foi, inclusive, essa luta de Carrero que inspirou Thiré a celebrar o centenário da avó. Ao tomar consciência de toda a batalha da atriz e todo o material que preservou ao longo de seis décadas de carreira, ela decidiu preservar o legado de uma das principais atrizes do teatro brasileiro.
"Ela viveu 95 anos e tinha muita história, muita coisa guardada. Quando ela morreu, achei que aquilo tudo deveria ser preservado. Eram fotos, cartas, bilhetes, figurinos, diários, enfim, um material imenso, que, quando chegasse a hora, eu sabia que faria alguma coisa. No ano passado, me dei conta do centenário e comecei a me movimentar, não foi difícil saber por onde começar a pesquisa."
Luisa Thiré entrou em contato com o Itaú Cultural que, em meio ao mapeamento das próximas exposições, mergulhou numa série de pesquisas, que trazem, além das anotações feitas durante "Negócios de Estado", poemas inéditos escritos e engavetados pela atriz e um workshop de três dias que realizou no Centro Cultural São Paulo à época da estreia da comédia "Ela É Bárbara", em 1994, na cidade.
O material foi gravado em fita cassete e sua transcrição permaneceu disponível para o público que, de acordo com Carlos Gomes, não sabia de sua existência. Elas estão disponíveis na exposição e, agora, o Centro Cultural São Paulo tem a chance de proporcionar o áudio digitalizado ao público.
"No workshop ela fala muitas coisas, sobre a vida, a carreira, a importância que ela dava para o fato de a mulher se impor para conseguir o que deseja. Ela diz ‘eu sou uma mulher que deu antes de casar, fui à praia grávida de biquíni e sou contra o armamento das pessoas’, e isso num momento de plena crise política por causa da campanha do desarmamento, em 1990", diz Gomes.
"Até hoje o que ela diz é muito forte. Tem um paralelo com o que vivemos. E essa gravação é muito rica e nunca foi usada, é só um registro que o centro cultural mantém, e agora está disponível para quem quiser saber."
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