segunda-feira, 22 de agosto de 2022

LEONARDO GOLDBERG Duas versões de Brasil, fsp

 

Leonardo Goldberg

Psicanalista e doutor em psicologia (USP), é professor universitário e autor de ‘Das Tumbas às Redes Sociais - um estudo sobre a morte e o luto na contemporaneidade’ (Benjamin Editorial) e 'O Sujeito na Era Digital: ensaios sobre psicanálise, pandemia e história' (Almedina, 2021)

Vivemos um momento histórico impossível de relativizar ou derivar em terceiras, quartas, quintas vias. Há uma versão do Brasil que coaduna com as insistências de instituições que —de forma quase extemporânea— tentam intervir na política a partir do medo: ameaça, divisão dos cidadãos em categorias, rupturas institucionais e descrição do inimigo enquanto desprovido de dignidade política.

Se por um lado um interlocutor pode contemporizar e dizer que se trata apenas de ameaças pontuais e publicitárias, que as instituições na prática continuam intactas e a República a mesma, por outro a pandemia de Covid-19 desvelou a promessa cumprida: o governo federal agiu boicotando todas as tentativas de acelerar o processo terapêutico dos adoecidos, as vacinas, o cuidado e até os ritos fúnebres. O presidente Jair Bolsonaro (PL) até afirmou que a vacina tornaria seus cidadãos jacarés —e isso já seria suficiente para uma República consistente derrubar seu líder.

A outra versão de Brasil conta com a maior coligação partidária da história do país. Isso não é pouco. Não é pouco, e sua promessa é reestabelecer a continuidade de uma República que, ao menos desde 1985, organiza o país sob o signo de uma social-democracia, modelo este que sem dúvida se apresenta como uma exceção em uma história que data de 1500. Uma promessa que engloba partidos e programas de esquerda e um André Janones (Avante), mago das redes, ao mesmo lado é uma proposta baseada na plurivocidade, na mistura semiótica das vozes mais diversas. Qualquer outra retórica argumentativa desvia a questão em jogo, que é justamente a manutenção da plurivocidade.

O líder dessa versão, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para além de qualquer raivosidade personalista, já venceu em diversos níveis. Viveu o que o escritor norte-americano Joseph Campbell, inspirado por James Joyce, chamou de monomito ou "A Jornada do Herói", uma espécie de invariável que aparece na literatura e na história: uma aventura sem garantias, passando por chamados, provações, seguido de um trauma ou declínio bastante significativos e o retorno, transformado.

Outros estudiosos, escritores, psicólogos, antropólogos, tentaram estabelecer essas invariáveis tão comuns na história. O que seria bastante incomum é que o protagonista, nesse terceiro tempo, não vencesse. Afinal, no caso de Lula, houve quase um apelo —inclusive dos opositores— ao retorno: o esforço nacional foi colocar, por anos, um aposentado que vivia no ABC paulista no centro da preocupação política nacional. A questão era depreciar mais o símbolo que a pessoa. O ponto da trama é justamente esse: uma das qualidades dessas figuras é que elas não têm escolha, medo e tampouco saída do próprio fado.

Ao encará-lo (o destino) e topar reorganizar a República através da realpolitik —pressupondo que somos radicalmente animais políticos, não apaixonados ingênuos—, o "ex-futuro-presidente" encarna a transformação histórica inevitável pela qual estamos atravessando e a sedimentação de um país que conta com mais vozes que o de outrora.

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