"É a economia, estúpido!" foi um dos slogans internos da campanha vitoriosa de Bill Clinton na corrida presidencial dos EUA em 1992. No Brasil de 2022, a candidatura Bolsonaro se apossou da defesa da família. A ofensiva para mostrar a esquerda como antifamília ajuda a explicar por que o presidente cresceu —segundo a pesquisa Quaest— 10 pontos percentuais desde maio entre evangélicos de SP e MG.
Os estudos da antropóloga Claudia Fonseca sobre o Brasil popular sugerem um caminho para entender por que o PT continua vulnerável a esses ataques. Na conclusão do livro —não por acaso intitulado— "Família, Fofoca e Honra" (2001), ela explica:
"De algum modo, o Brasil se apresenta como um caso extremo da sociedade de classes. Aqui, a diferença entre a elite —de uma sofisticação cosmopolita— e o zé-povinho não cessa de crescer... No plano cultural, isso criou um sistema que, em muitos aspectos, pode ser comparado ao apartheid da África do Sul... Em resumo, para muitos brasileiros, os únicos momentos de contato interclasses se produzem na conversação com a faxineira ou durante um assalto. As barreiras de três metros de altura erigidas diante das casas burguesas são como uma metáfora do fosso quase intransponível entre os dois mundos."
Nesse abismo de mundos, a ideia de família tem significados muito diferentes. O modelo minimalista (nuclear) da família cosmopolita está distante da família estendida do Brasil popular, que inclui convívio intenso com padrinhos, agregados, tios e primos, alguns vivendo na mesma rua ou bairro, outros presentes em grupos de WhatsApp com dezenas de integrantes.
A família dos milhões de nordestinos que migram do sertão rural para as cidades do Sul e Sudeste desde os anos 1950 é conservadora em termos de valores, mas funciona como uma espécie de apólice de seguros. Todos mobilizam seus recursos —econômicos, sociais e afetivos— para ajudar aqueles que atravessam dificuldades.
No bairro pobre em que vivi e trabalhei como pesquisador, o posto de saúde funciona entre 10h da manhã e 4h da tarde (quando o médico aparece para trabalhar), o hospital mais próximo fica a 90 quilômetros, o policiamento é inconstante e a escola de ensino médio funciona em uma casa velha que não foi adaptada para essa finalidade. Mas o que incomoda mais os moradores é a falta de atividades para crianças e adolescentes no contraturno escolar.
Pais e mães passam o dia fora enquanto seus filhos ficam expostos à oferta de drogas e ao envolvimento com grupos criminosos. E são igrejas evangélicas que oferecem soluções para essa situação provendo atividades como cursos de dança e música. Igrejas hoje fazem parte dessas redes de ajuda mútua, principalmente para migrantes que vivem distantes de seus familiares. "É a família, estúpido!"
Para Henrique Vieira, o pastor com maior trânsito no campo progressista hoje, a esquerda abdicou de falar de família por entendê-la apenas como reprodutora do patriarcado. Também abdicou de falar do amor porque isso "não é racional" (além de ser "cafona"); e abdicou de falar de vida porque defender a vida seria ser contra o aborto. Henrique defende que progressistas guardem suas cartilhas e palavras de ordem, e dialoguem com evangélicos usando como idioma a defesa da vida, do amor e da família.
A guerra cultural que fortalece a candidatura Bolsonaro mira principalmente em temas como drogas, homoafetividade e aborto, mas esses assuntos são menores em relação à proteção da família, especialmente da criança, que representa a fragilidade e a inocência.
Para entrar nas conversas em grupos de WhatsApp de evangélicos reais, o PT deverá defender clara e enfaticamente a proteção da criança —e também da mulher e do idoso. Falar sobre afeto e cuidado. E hastear bem alto a bandeira daquela instituição desprestigiada e fora de moda, mas central para a sobrevivência do brasileiro pobre: "A família, estúpido!"
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