Uma lei pouco comentada da arte narrativa pode nos ajudar a compreender um fenômeno aparentemente descabido que tem ficado claro nesta campanha eleitoral —e que nem meia centena de apartamentos comprados com dinheiro vivo deve ser capaz de alterar.
Por que, tendo se envolvido no maior número de crimes de um chefe de Estado na história do Brasil —com centenas de milhares de corpos de vantagem—, Jair Bolsonaro ainda passa por candidato qualificado aos olhos de uma fatia expressiva do eleitorado?
A resposta, que pode ser decisiva para o futuro do país, é complexa. Sem uma PGR servil e um Congresso comprado, disfunções graves em si mesmas, é provável que pelo menos algumas das acusações contra o presidente tivessem prosperado, alterando essa percepção.
Ao miasma de corrupção institucional é preciso somar uma imprensa titubeante, indecisa sobre o tom correto da cobertura, e o traço cultural mais profundo da transformação de fatos em fumaça no forno paranoico das redes sociais.
A tese que eu lanço aqui é que, além disso tudo, ajuda a explicar a blindagem bolsonaresca uma obrigação que as histórias impõem a seus narradores —a de escolher uns poucos detalhes para melhor conjurar o todo.
Por mais simples que seja uma cena, o número de informações à disposição de quem a conta tende ao infinito. Alguém entra numa sala. Quem? Como se veste? Com que intenção? Há outras pessoas lá? Como elas reagem ao recém-chegado?
Isso é só o começo. É possível descrever a sala, sua iluminação, suas janelas, quantos e quais itens de mobília e decoração há ali. Que horas são? Qual é a temperatura? Temos silêncio, música, ruído? E ainda nem adentramos a paisagem íntima dos personagens, seu passado etc.
Se tudo isso são possibilidades, nem tudo cabe na história —não se a ideia for que ela faça sentido. "Acaricie os detalhes, os divinos detalhes", dizia o escritor russo Vladimir Nabokov.
O conselho é precioso. Investir na metonímia, selecionar com carinho as partes que importam e deixar as outras de fora, caladas ou apenas sugeridas, é mais de meio caminho andado.
Sem um foco preciso cercado pelo não dito, toda narrativa vira uma gritaria indistinta. Quem procura contar tudo, abarcar tudo, cansa e oprime o leitor-ouvinte-espectador, que foge espavorido ou morto de tédio. Fadiga narrativa é uma coisa terrível.
Em outras palavras, quem tenta contar tudo não conta nada. Baz Luhrmann é o exemplo mais acabado de cineasta que recusa o silêncio e a seleção de elementos, afogando filmes como "Moulin Rouge" num excesso opressor de informação.
Bolsonaro é uma espécie de Baz Luhrmann da política. Sua biografia e seu prontuário são tão atulhados de barbaridades que acusá-lo de um crime —ou mesmo de dois ou três, o máximo que uma história coerente permite antes de virar geleia— significa guardar silêncio sobre outros dez, vinte, incontáveis. Quem cala absolve?
Talvez isso ajude a explicar por que, no debate da Band, ninguém falou em rachadinha ou racismo, e pouco foi dito sobre a corrupção superlativa do orçamento secreto, entre outros temas em que o presidente tem ficha sujíssima.
Do ponto de vista da arte narrativa, acusar Lula de um crime só, corrupção, tende a colar mais do que montar um amplo painel de acusações contra Bolsonaro. Elas são tantas e tão cabeludas que muita gente acha a história inverossímil, morre de tédio ou muda de canal.