quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Sérgio Rodrigues - Crimes em excesso viram geleia, fsp

 

Uma lei pouco comentada da arte narrativa pode nos ajudar a compreender um fenômeno aparentemente descabido que tem ficado claro nesta campanha eleitoral —e que nem meia centena de apartamentos comprados com dinheiro vivo deve ser capaz de alterar.

Por que, tendo se envolvido no maior número de crimes de um chefe de Estado na história do Brasil —com centenas de milhares de corpos de vantagem—, Jair Bolsonaro ainda passa por candidato qualificado aos olhos de uma fatia expressiva do eleitorado?

A resposta, que pode ser decisiva para o futuro do país, é complexa. Sem uma PGR servil e um Congresso comprado, disfunções graves em si mesmas, é provável que pelo menos algumas das acusações contra o presidente tivessem prosperado, alterando essa percepção.

Ao miasma de corrupção institucional é preciso somar uma imprensa titubeante, indecisa sobre o tom correto da cobertura, e o traço cultural mais profundo da transformação de fatos em fumaça no forno paranoico das redes sociais.

A tese que eu lanço aqui é que, além disso tudo, ajuda a explicar a blindagem bolsonaresca uma obrigação que as histórias impõem a seus narradores —a de escolher uns poucos detalhes para melhor conjurar o todo.

Por mais simples que seja uma cena, o número de informações à disposição de quem a conta tende ao infinito. Alguém entra numa sala. Quem? Como se veste? Com que intenção? Há outras pessoas lá? Como elas reagem ao recém-chegado?

Isso é só o começo. É possível descrever a sala, sua iluminação, suas janelas, quantos e quais itens de mobília e decoração há ali. Que horas são? Qual é a temperatura? Temos silêncio, música, ruído? E ainda nem adentramos a paisagem íntima dos personagens, seu passado etc.

Se tudo isso são possibilidades, nem tudo cabe na história —não se a ideia for que ela faça sentido. "Acaricie os detalhes, os divinos detalhes", dizia o escritor russo Vladimir Nabokov.

O conselho é precioso. Investir na metonímia, selecionar com carinho as partes que importam e deixar as outras de fora, caladas ou apenas sugeridas, é mais de meio caminho andado.

Sem um foco preciso cercado pelo não dito, toda narrativa vira uma gritaria indistinta. Quem procura contar tudo, abarcar tudo, cansa e oprime o leitor-ouvinte-espectador, que foge espavorido ou morto de tédio. Fadiga narrativa é uma coisa terrível.

Em outras palavras, quem tenta contar tudo não conta nada. Baz Luhrmann é o exemplo mais acabado de cineasta que recusa o silêncio e a seleção de elementos, afogando filmes como "Moulin Rouge" num excesso opressor de informação.

Bolsonaro é uma espécie de Baz Luhrmann da política. Sua biografia e seu prontuário são tão atulhados de barbaridades que acusá-lo de um crime —ou mesmo de dois ou três, o máximo que uma história coerente permite antes de virar geleia— significa guardar silêncio sobre outros dez, vinte, incontáveis. Quem cala absolve?

Talvez isso ajude a explicar por que, no debate da Band, ninguém falou em rachadinha ou racismo, e pouco foi dito sobre a corrupção superlativa do orçamento secreto, entre outros temas em que o presidente tem ficha sujíssima.

Do ponto de vista da arte narrativa, acusar Lula de um crime só, corrupção, tende a colar mais do que montar um amplo painel de acusações contra Bolsonaro. Elas são tantas e tão cabeludas que muita gente acha a história inverossímil, morre de tédio ou muda de canal.


OBITUÁRIO JOSÉ CARLOS ZANINI (1937 - 2022) Mortes: Ativo e metódico, viajou o mundo acompanhando Copas e Olimpíadas, FSP

 


SÃO PAULO

Com sorriso aberto, José Carlos Zanini olha para a câmera segurando seis ingressos em forma de leque.

Ele estava em Sydney, na Austrália, para as Olimpíadas de 2000, e foi personagem de uma reportagem da Folha com o título de "Viajar torcendo, torcer viajando".

José Carlos Zanini segura ingressos da Olimpíada de Sydney, na Austrália, em 2000 - Ormuzd Alves - 14.ago.2000/Folhapress

Recém-aposentado, divorciado e com os filhos crescidos, passou a colecionar eventos esportivos e carimbos de países exóticos no passaporte.

Acompanhou in loco seis Jogos Olímpicos e seis Copas do Mundo, além de inúmeras corridas automobilísticas e torneios de tênis, esporte que praticou até descobrir uma leucemia, em março do ano passado.

Em 1994, fritou no sol forte do Rose Bowl, em Los Angeles, para ver Roberto Baggio perder o pênalti que nos deu o tetra. Em 1998, foi um dos milhares que ficaram perplexos no Stade de France, em Paris, com a apatia de Ronaldo na derrota para a França.

Neto de italianos que viviam na roça, ele nasceu em Catanduva (SP) e chegou a São Paulo na década de 1960, para trabalhar no Banco do Brasil.

Formou-se engenheiro mecânico pela FEI (Faculdade de Engenharia Industrial), mas nunca exerceu a profissão, pois logo passou em concurso da Secretaria da Fazenda do Estado. Fez carreira como "fiscal de rendas", antigo nome para auditor fiscal.

Entre os colegas, era famoso pelo conhecimento enciclopédico das normas tributárias. Metódico ao extremo, devorava livros, sempre anotando observações em suas margens. Tinha fascínio especial pela história russa.

Na pandemia, sem poder viajar, valeu-se do confinamento para voltar a estudar cálculo e física.

Na infância dos filhos, foi pai exigente, insistindo que praticassem esportes e alertando-os contra a "inércia mental, o pior tipo de inércia que existe". Conforme ficou mais velho, passou a ter uma atitude mais relaxada com a vida.

Palmeirense, leu diariamente O Estado de S. Paulo durante décadas, mas passou a fazer concessões esporádicas ao jornal concorrente quando o filho são-paulino foi trabalhar na Folha. Só não abriu mão do alviverde.

Sempre muito ativo, dirigia os mais de 400 km até São José do Rio Preto para visitar a irmã Maria José nos intervalos das sessões de quimioterapia. Mesmo com o câncer avançando, nutria esperanças de ver mais uma Copa, a do Qatar, no fim do ano.

Pouco antes do Dia dos Pais, precisou ser internado, e em 27 de agosto, sedado, parou de respirar e partiu serenamente, aos 84 anos.

Deixa, além do autor deste texto, os filhos Flávia e João Carlos, os netos, Rafael e Pedro, e a companheira, Maria Ângela.

Fernanda Torres - Castração química é prima da lobotomia de assassinos e parente da pena de morte, FSP

 Clarissa Garotinho, do União Brasil, veio com tudo no lançamento de sua campanha ao Senado pelo Rio de Janeiro. Castração química de estupradores, ela bradou na estreia do programa eleitoral, à frente de uma multidão de bandeiras. Nas pílulas da propaganda, a proposta se completa com castração química de estupradores... E pedófilos.

Escrever sobre a castração de Clarissa já é ponto para Clarissa. Castração química de estupradores é meme nascido para se replicar. As três palavras bem encaixam na métrica, têm ritmo, e cada termo, em separado, traz em si um escândalo. Castração química de estupradores. Foi ouvir o trava-língua, para repeti-lo em moto perpétuo.

Ao fundir a pauta de combate à violência contra a mulher com a do bandido bom é bandido morto, Clarissa mostra que herdou o oportunismo político do pai.

Rosto de mulher repetido em dois tamanhos, como se fosse um cartaz de propaganda política cujas cores ficaram super desbotadas com o tempo. Os traços do rosto estão meio apagados, e as cores de fundo e sobre os rostos evocam o azul e o amarelo da bandeira do Brasil, mas bem desbotadas e até em tons diferentes
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres publicada em 31 de agosto de 2022 - Marta Mello

Qualquer ressalva à proposta transforma o crítico em cúmplice de estupradores e pedófilos. Quem se habilita?

Eu não condeno o tratamento psiquiátrico de perversos com transtorno grave de comportamento e creio que já existem dispositivos legais para medicar criminosos com distúrbios mentais irreversíveis. O que temo é o espírito de Savonarola da candidata em marcha, à frente de um exército impoluto, pedindo a cabeça dos degenerados.

A castração química de estupradores e pedófilos é prima da lobotomia de assassinos e infratores; irmã da esterilização de moradores de rua e drogados e tia do troque o feminicídio pelo homicídio, armando a mulher com uma pistola. A castração de estupradores é parente distante da pena de morte.

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Se 2013 serve de marco, ano que vem completamos dez anos de manifestações de rua, escândalos de corrupção, recessão e golpes; de tem que manter isso aí, de Jair se acostumando e de se acostumar com as hemorroidas, tobas e trozobas do capitão do Planalto. Embrutecemos. Os dez anos de atoleiro republicano pariram o populismo feminista totalitário de Clarissa Garotinho, estranho fruto transgênico da famigerada polarização.

Aliada à direita bolsonarista, Clarissa não vê contradição em abraçar pautas ligadas aos direitos da mulher e apoiar um candidato com rejeição recorde entre o eleitorado feminino. Pressionada pela disputa com Romário, ela busca votos fora do próprio cercado. A proximidade das eleições torna inevitável a invasão desse campo mal arado, onde pasta a terceira via.

No debate da Band com os candidatos à presidência, Messias não suportou ser interpelado por mulher e agrediu Vera Magalhães, após a pergunta da jornalista sobre a queda da cobertura vacinal no país.

"Vera, não podia esperar outra coisa de você. Você dorme pensando em mim. Tem alguma paixão por mim. Você não pode tomar partido num debate como este, fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro", disse o presidente.

Ciro tinha direito ao comentário e ignorou o machismo e o destempero de Bolsonaro, preferindo apontar para a militância petista. Respeito Ciro Gomes, talvez não lhe reste alternativa que não a de mirar no eleitorado à esquerda, mas, a esta altura, comparar Bolsonaro a Lula, como se os dois candidatos operassem segundo as mesmas regras, é um desserviço público.

Não existe antagonismo entre Lula e Jair, o antagonismo é entre Jair e o resto da bancada presente, Lula incluído.

Quando Lula propôs, em rede aberta, uma aproximação com o PDT, Gomes sorriu e recusou, chamando o oponente de encantador de serpente. A política exige estômago para digerir traições. Gomes se apresenta como a saída para a polarização, mas precisa dela para continuar no páreo.

O problema dos que disputam a terceira via é que ela já foi costurada com Geraldo Alckmin. Na entrevista que concedeu ao Jornal Nacional, Lula deixou claro que o ex-governador de São Paulo não será um vice
decorativo. Em 2018, Alckmin foi sonho de consumo de parte dos eleitores da terceira via, mas não pontuou nem com um capítulo inteiro de tempo de novela, no horário nobre da televisão.

Alckmin se aliou ao carisma de Lula, único capaz de vencer o pleito, e fez o primeiro movimento por uma frente democrática. Para os que preferem morrer a votar no petista, sugiro que apertem a opção Alckmin nas urnas e, em caso de vitória, cobrem do vice o poder de voz.

Com as pesquisas estacionadas no núcleo duro dos dois líderes da corrida, Lula na dianteira e Bolsonaro subindo lenta e gradualmente, como num sonho persecutório, as chances de definição no primeiro turno são improváveis. Mas que seria bom tentar dar por encerrado no dia 2 de outubro, num gesto não de submissão ao PT, mas de basta ao desvario de uma década, ah... isso seria.