domingo, 6 de dezembro de 2020

O naufrágio, J. R. Guzzo, O Estado de S.Paulo


06 de dezembro de 2020 | 03h00

Diante da comédia de circo montada em torno da “reeleição” do senador Davi Alcolumbre e do deputado Rodrigo Maia para os cargos que ocupam como presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, vale a pena sair um pouco da neura cultivada pelo noticiário político e pelas mesas-redondas na televisão e fazer algumas perguntas bem fáceis de responder. A primeira é: “Existe uma única pessoa, no Brasil e no mundo, que esteja pedindo a reeleição de qualquer dos dois – salvo eles próprios, suas famílias e seus amigos?” A resposta – não, não há ninguém pedindo nada – já resolve 90% da questão, não é mesmo? Se toda essa novela de terceira categoria se resume a atender aos interesses pessoais dos envolvidos, não faz o menor nexo violar abertamente a Constituição, em parceria com o STF, só para deixar contentes o senador e o deputado. 

As outras perguntas possíveis são igualmente elementares. O que a população brasileira teria a ganhar na prática com a permanência, até o momento ilegal, de Alcolumbre e de Maia nos seus empregos atuais? Nada, outra vez. Qual a grande emergência nacional que poderia recomendar uma mudança na Constituição para legalizar os desejos desses dois cidadãos? Nenhuma. Enfim: qual seria o motivo de interesse público, mesmo teórico, para justificar essa “reeleição”? Nenhum. Conclusão: a história toda deveria ser encaminhada para o arquivo morto, e não sair mais de lá. Só que não: os presidentes atuais do Senado e Câmara continuam sendo tratados pela mídia, pelo mundo político e pelas elites como dois imensos estadistas empenhados no melhor desfecho de uma grave questão nacional. Não há questão nacional nenhuma. Há apenas uma tentativa de atender a interesses individuais. 

Nenhum dos dois, pelo que está escrito na lei, tem o direito de continuar no cargo. Alcolumbre, pelo menos, teve a sinceridade de admitir que está interessado no que é melhor para ele. Maia tem feito de conta que é apenas um patriota à espera de decisões superiores; tudo o que deseja é “cumprir a lei”, na condição de defensor número um do “estado de direito” que atribui a si mesmo. Assim sendo, o presidente do Senado pediu que o STF tomasse essa extraordinária decisão que frequentou as manchetes nos últimos dias: declarar que um artigo da Constituição é inconstitucional. O artigo em causa proíbe a reeleição dos presidentes das duas Casas do Congresso, nas condições em que estão os mandatos de ambos. 

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Mesmo deixando de lado a questão central – a absoluta falta de sentido da reeleição –, deveria estar claro, de qualquer forma, que uma mudança na Constituição só poderia ser feita por emenda constitucional, e só os 513 deputados federais e 81 senadores têm o direito de aprovar emendas constitucionais. Mas não é desse jeito que as coisas funcionam no Brasil de hoje. O Poder Legislativo aceita, com perfeita passividade, a sua submissão ao Poder Judiciário; em consequência, faz o que o STF manda. 

Os atuais presidentes do Senado e da Câmara, quando se esquece a conversa fiada, estão em busca de uma coisa só: a manutenção dos poderes, dos privilégios e da vida de sultão à custa de dinheiro público que a Constituição Cidadã lhes garante – vantagens turbinadas pelas constantes “releituras” da lei que os membros do Congresso vivem fazendo em seu próprio favor. O STF, naturalmente, não vai decretar a reeleição dos dois – ou pelo menos não se sugeriu essa saída até agora. Mas é um atestado do naufrágio do Congresso brasileiro que seus comandantes peçam que a lei seja violada – e entreguem o futuro do Poder Legislativo a onze cidadãos que nunca tiveram um voto na vida.

*JORNALISTA


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