quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Após danos irreversíveis ao Xingu, Belo Monte terá que liberar mais água, OESP

 André Borges, O Estado de S.Paulo

03 de dezembro de 2020 | 05h00
Atualizado 03 de dezembro de 2020 | 09h07

BRASÍLIA - Depois de mudar o curso das águas do Rio Xingu para privilegiar a geração de energia, a Hidrelétrica de Belo Monte, em operação no Pará, será obrigada a liberar um volume maior da água que hoje retém em seu reservatório. A medida pretende atenuar as condições drásticas de vida que passaram a ser a rotina de um trecho de 130 quilômetros de extensão do rio, conhecido como a Volta Grande do Xingu.

As novas regras de vazão de água serão impostas pelo Ibama, responsável pelo licenciamento ambiental de Belo Monte, que é a maior hidrelétrica nacional. O Estadão apurou que a diretoria do Ibama já decidiu sobre a necessidade de revisar as regras que deverão ser acatadas pela Norte Energia, concessionária que opera Belo Monte.

A usina de Belo Monte, maior hidrelétrica brasileira
Desde 2009, o Ibama apontava os riscos que o volume de água da Belo Monte traria à região. Foto: Marcos Corrêa/PR

Em novembro de 2015, a Norte Energia fechou a barragem principal da usina, desviando uma média de até 80% da água para um canal artificial de mais de 20 quilômetros, onde foram instaladas as grandes turbinas da hidrelétrica. Com esse desvio, um trajeto de 130 km, que há milhares de anos convivia com um regime natural de seca e cheia, passou a ser submetido a um regime reduzido e constante de água, o que tem acabado com dezenas de espécies de peixes, tartarugas e frutos, além de comprometer a subsistência de milhares de famílias espalhadas em 25 vilas do trajeto do rio, entre indígenas e não indígenas.

O controle sobre a quantidade de água que passa ou não pela barragem é feito pela Norte Energia, por meio de “hidrograma de consenso” que prevê os volumes que devem ser liberados. Ocorre que esse documento técnico foi elaborado pela própria empresa, quando do seu licenciamento, em 2009. À época, relatórios do Ibama já chamavam a atenção para o fato de que os volumes previstos no hidrograma trariam riscos à região. Esses pareceres, porém, foram ignorados e o empreendimento recebeu autorização para ser construído.

Testes

Hoje, dez anos após a licença que autoriza as obras de Belo Monte, a situação se confirma. A Norte Energia alega que o trecho ainda passa por uma fase de “testes” e que isso deve ser analisado pelo prazo de seis anos, como previsto no edital da usina. O mesmo edital prevê, porém, que o Ibama pode alterar as regras de vazão do rio, conforme identifique situações que julgue necessárias.

Uma nota informativa do Ibama de 5 de outubro, a qual a reportagem teve acesso, menciona a conclusão de especialistas sobre o assunto, para afirmar que “a sobrevivência e a manutenção de todo o ecossistema da Volta Grande e dos modos de vida de comunidades não podem ser objeto de testes quando são contundentes e claras as evidências e indicativos de impactos graves e irreversíveis que já ocorrem e estão em curso”.

O pulso da inundação natural do Rio Xingu garantia a passagem de 20 mil a 25 mil metros cúbicos de água por segundo nos meses de cheia, de dezembro a junho. Com a construção da usina, a empresa adotou duas regras: libera 4 mil m³ por segundo em um ano e 8 mil m³ no ano seguinte. Esse regime artificial, porém, acabou por comprometer completamente a vida no trecho bloqueado do rio.

Impraticável

Ao analisar os resultados, a equipe técnica do Ibama concluiu que o cenário com 4 mil m³/s “é impraticável”. Sobre o cenário com 8 mil m³, declarou que os dados “são insuficientes para garantir que não haverá piora drástica nas condições ambientais e de modo de vida na Volta Grande do Xingu”.

Em sua nota técnica, que foi referendada pelo presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, o órgão afirma que, “desde o início dos estudos, não havia certeza de qual seria a vazão suficiente para prevenir ou mitigar os impactos” e que a Norte Energia propôs seu “hidrograma de consenso” como medida de mitigação.

Neste segundo semestre, o Ibama apresentou um “hidrograma provisório” para a operação de Belo Monte. A Norte Energia, porém, entrou com ação contra essa decisão, sob alegação de que o órgão mudava as regras do licenciamento no meio do processo e que agia assim por “pressão” do Ministério Público Federal. O caso foi parar no Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1).

Na semana passada, a Justiça Federal negou o pedido da concessionária contra o Ibama. “Foi devidamente justificada a alteração do referido hidrograma, diante de fatos e dados, bem como da incidência dos princípios da precaução e da prevenção”, afirmou o TFR1. “A conclusão que se chega é que o órgão ambiental não ultrapassou quaisquer dos seus limites administrativos no tocante à sua competência para realizar, justificadamente, alterações.”

Estiagem

Por meio de nota, a Norte Energia culpou a estiagem pela situação. “A vazão natural do Rio Xingu que chega ao reservatório da UHE (usina hidrelétrica) Belo Monte está abaixo dos padrões já observados em outros períodos de estiagem, sendo uma das cinco menores vazões já registradas desde 1968, quando foram iniciados os acompanhamentos de vazões”, declarou.

Sobre a decisão do TRF1, declarou que o assunto “está em análise”. A respeito da decisão do Ibama de determinar um novo regime de vazão para o Rio Xingu, declarou apenas que não foi comunicada.

Pressão

No ano passado, após uma vistoria local realizada por diversos órgãos públicos e especialistas, foi novamente comprovado que “não está demonstrada a garantia da reprodução da vida, com riscos aos ecossistemas e à sobrevivência das populações residentes”, por causa da pouca água no trecho. “A pressão política para que fosse emitida a licença no menor prazo possível foi um dos motivos para que se exonerasse do cargo a então ministra do Meio Ambiente Marina Silva, ainda em 2008”, afirma o Ministério Público Federal.

Órgãos falavam em ‘tragédia ambiental'

Há mais de dez anos, Ibama, Fundação Nacional do Índio (Funai), universidades públicas e o Ministério Público Federal alertam para a situação de tragédia ambiental que poderia ser imposta aos 130 quilômetros de corredeiras, cachoeiras, ilhas, canais, pedrais e florestas aluviais que formam a Volta Grande do Xingu. Hoje, o MPF chama a atenção para “evidências científicas de que um 'ecocídio' fulminará um dos ecossistemas da Amazônia de maior biodiversidade”.

A decisão do Ibama de impor um novo regime de partilha das águas vai ao encontro do que propõe o MPF, apesar de ainda não haver detalhamento técnico sobre como essa operação se daria na prática, pois a usina opera a plena carga desde novembro de 2019.

A expectativa é de que, no lugar do “hidrograma de consenso” da concessionária, entre em operação um “hidrograma ecológico”, que não apenas priorize a geração de energia, mas passe a garantir as condições naturais e de adaptação para a Volta Grande do Xingu. Em esclarecimentos que o Ibama deu ao MPF, foi revelado que o “hidrograma de consenso” da empresa chegou a ser aprovado pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2009, mas isso ocorreu antes da emissão dos pareceres técnicos que rejeitavam a proposta. 


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