quinta-feira, 17 de setembro de 2020

O dilema das redes: pode não haver um vilão, mas temos um problema, Fernando Schüler, FSP

 “Quando você olha ao redor, sente que o mundo está enlouquecendo”, começa dizendo Tristan Harris, em “O Dilema das Redes”, documentário recém-lançado pela Netflix. O tema me interessou, pois é exatamente a sensação que por vezes tenho observando o debate político, no dia a dia. Resolvi assistir.

O documentário acerta trazendo jovens veteranos da internet para alertar sobre os riscos da indústria que ajudaram a criar e falar sobre seus arrependimentos. Boa parte saiu da “indústria” para lançar sua start-up. Uma delas ajuda as pessoas a se “desconectar” de seus celulares. Harris criou uma ONG para humanizar as redes. Lançar uma nova marca, engajar, essas coisas. No fundo emplacar um bom aplicativo para melhorar a vida das pessoas. Voltar para a “indústria”.

Me lembro de uma frase que ouvi de Gilles Lipovetsky: “O mercado produz o mainstream e logo o avesso do mainstream”. Foi assim com a indústria do cinema e o Festival de Sundance. E logo o avesso se torna, ele mesmo, o mainstream.

Há um momento em que Harris é replicado por um debatedor: o que a internet faz hoje não é basicamente o que a TV e o marketing faziam, apenas em um nível mais avançado? Não estaríamos reclamando hoje, como sempre fizemos, dos ciclos de destruição criadora da tecnologia?

Alguém me lembrou sobre o muro de lamentações em torno da Amazon. Uma amiga me reclamou do desaparecimento das Barnes & Noble em que ela gostava de ler e tomar café, por conta da Amazon . Me lembrei o quanto se reclamou quando as megastores arruinaram as livrarias de bairro, há não muito tempo.

Lynn Fox, ex-Google, talvez tenha tocado no ponto central. “Não há um vilão, de jeito nenhum.” É o banho de água fria do documentário. Como assim? E o Zuckerberg? E o Sergey Brin e o Larry Page, com aquelas caras de bons moços e US$ 100 bi na conta?

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Não há vilões por uma razão elementar. O ecossistema digital não foi “planejado”. Ele é resultado de uma revolução tecnológica feita por uma multidão de indivíduos, empreendedores, investidores, inventores, consumidores.

Se um punhado deles resolvesse dizer “chega, não vamos investir mais em design viciando as pessoas”, um outro punhado de empreendedores menos bacanas, e provavelmente ainda mais jovens, o faria.

Podemos não ter um vilão, mas temos um problema. Uma consequência não intencional do avanço tecnológico, ele mesmo um processo não controlado. Uma pequena mostra surge no documentário: o suicídio de pré-adolescentes, vítimas do bullying, cresceu 151% entre a primeira e a segunda década do século. O bullying sempre existiu no pátio do colégio, mas adquiriu uma escala inédita.

Coisa parecida se dá com a polarização política. Todos imaginavam que seria bom para a democracia o aumento da informação e participação dos cidadãos. Se foi ou não, algum dia talvez saberemos. O que se sabe é que o mecanismo infernal da tribalização fez o seu trabalho.

De novo, não há bicho-papão. Há milhões de pessoas agrupando-se como abe lhas nas suas colmeias ideológicas. Excluindo, difamando, cancelando ou desejando “racionalmente” a morte do outro.

Temos um problema sem solução. A tecnologia deu poder às pessoas, e elas mostram todos os dias o que são. Se é verdade que as fake news têm um impacto seis vezes maior do que notícias verdadeiras, quem faria a distinção entre essas coisas e que tipo de regulação resolveria isso? Uma pesquisadora, no documentário, dispara: o Google não vai nos dizer o que é a verdade, esqueçam.

É possível imaginar que alguma regulação possa assegurar liberdade e privacidade, nas redes, na linha do que fez nosso Marco Civil da Internet. Mas isso não resolve o problema do “overload” da democracia e do ecossistema de ódio que assaltou o debate público.

É uma perfeita ilusão imaginar que meia dúzia de magnatas californianos irão apertar um botão e ajustar seus algoritmos para o “bem”. Se fizerem isso, intuo que a coisa irá piorar. O governo fará isso com sua sutil inteligência? Regular fake news, bloquear os sites malvados? No Brasil andam tentando fazer isso. Deus nos livre desse mundo perfeito.

A solução mais modesta, no fim, foi dada por Jaron Lenier: desligue o celular, caia fora dos trends e da cretinice das redes.

“O dia está bonito lá fora, percebeu?” Nada disso salvará o sistema, mas talvez seja a melhor dica do documentário, que por sinal parece estar fazendo sucesso e dando uma boa grana (certo, Lipovetsky?) na internet.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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