sábado, 19 de setembro de 2020

Morre Elisaldo Carlini, pioneiro global na ciência sobre cânabis, FSP

 16.set.2020 às 22h40

SÃO PAULO

Principal referência no Brasil sobre estudos da cânabis e de outras substâncias psicotrópicas, o médico e pesquisador Elisaldo Carlini morreu nesta quarta-feira (16) aos 90 anos.

Fundador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), Carlini foi pioneiro global em pesquisas sobre propriedades terapêuticas da maconha. Seus estudos beneficiaram milhares de pessoas que sofrem de doenças como epilepsia e esclerose múltipla, entre outras.

Seus trabalhos com o químico búlgaro-israelense Raphael Mechoulam, 89, inauguraram um campo de estudos aplicados sobre os efeitos terapêuticos das mesmas plantas proibidas e criminalizadas a partir de tratados internacionais de controle de drogas. Mechoulam é reconhecido mundialmente por ter isolado, ainda nos anos 1960, dois dos princípios ativos mais conhecidos da planta: o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabidiol (THC).

Juntos, ele e Carlini descobriram as propriedades anticonvulsionantes do CBD e publicaram extensivamente sobre o assunto ao longo dos anos 1970. Essa linha de pesquisas da dupla de cientistas teve com ponto alto um estudo com pessoas que sofriam de epilepsia grave, conduzido em São Paulo por Carlini, em que ficaram evidentes os efeitos benéficos do CBD.

Elisaldo Carlini, um dos pioneiros da farmacologia no Brasil e do estudo de substâncias psicotrópicas, foi um dos pesquisadores mais respeitados do mundo no campo dos efeitos terapêuticos da cânabis - Adriana Toffetti / A7 Press/Folhapress

"Os resultados eram tão consistentes que eu e Carlini sugeríamos no artigo que o achado fosse transformado em medicamento", lembra Mechoulam. "Mas sinto informar que absolutamente nada aconteceu ao longo de 35 anos. E só recentemente o primeiro medicamento para epilepsia à base de CBD foi aprovado nos EUA", lamenta ele , que se refere a Carlini como um "cientista notável e um grande amigo".

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"Imagine quantas vidas poderiam ter sido salvas em 35 anos? Mas nada aconteceu porque governos e indústria não tinham uma mente aberta. Uma pena."

Carlini enfrentou barreiras como esta ao longo de toda a sua carreira dedicada a um tema carregado de estigmas e desinformação, mas manteve a fleuma para fazer avançar o conhecimento científico pelo qual se interessava. Buscou colaborações internacionais e formou novas gerações de cientistas brasileiros, numa atividade na qual era reconhecido pela generosidade e modéstia, mas também pelo alto grau de exigência.

"Elisaldo Carlini foi um cientista extremamente visionário e que nunca se furtou ao debate", afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, fundador do Insituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). "Ele representa a excelência científica e ética. E a coragem de lutar pela ciência e pela saúde das pessoas."

Para Sidarta, se o Brasil tem alguma chance de ganhar um Prêmio Nobel em medicina, ela está no trabalho realizado por Carlini.

Renato Filev, pesquisador do Cebrid que foi aluno de Carlini antes de trabalhar com ele, destaca a atuação do médico na fundação do departamento de psicobiologia da Unifesp e na criação, há 50 anos, do primeiro Simpósio Brasileiro sobre Plantas Medicinais, cuja 25a edição, em 2018, foi presidida pelo cientista.

"Sua atuação neste campo o aproximou dos povos originários brasileiros, e a sua busca era para que os povos indígenas se beneficiassem desse conhecimento", diz.

Nascido no interior de São Paulo, Carlini se mudou para a capital ainda adolescente e conciliou trabalho e estudo até ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, onde se formou em 1956. Anos depois tornou-se professor emérito da mesma instituição.

Nos anos 1960, fez mestrado na Universidade de Yale, nos EUA. Ao regressar ao Brasil, passou a centrar seus estudos na psicofarmacologia da Cannabis sativa, que tratou de desmitificar a partir de estudos tão rigorosos quanto revolucionários.

Entre 1995 e 1997 esteve à frente da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, órgão predecessor da atual Anvisa, e foi membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems, da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Carlini deixa seis filhos, seis netos e dois bisnetos, além de muitos herdeiros profissionais e científicos. Para Filev, "são dezenas de pessoas que vão levar seu legado adiante e honrar essa trajetória de dedicação à ciência e à saúde".

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