Em vez de depor, um senador preferiu cantar com o irmão deputado, um animador sem máscara e um mascarado de burro. A letra entoada pelos cantores-bailarinos era simples, como seu pensamento: “Todo maconheiro dá o toba”.
Simplismo em sintonia com o discurso presidencial na ONU, encerrado como discurso de campanha: “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família a sua base”.
São dois documentos de um governo tacanho, infenso a fatos, como as queimadas e a pandemia, mas aferrado a mantras doutrinários. Esta retórica é a cloroquina da família presidencial, distribuída aos seguidores apaixonados.
Retórica defensiva, para qual a simples existência de gente diferente de si é uma ameaça. Os bolsonaristas jogam este jogo de reação simbólica em todos os campos.
Nesta semana, enquanto os Bolsonaros discursavam e dançavam, o presidente da Fundação Palmares, autodefinido no Twitter “negro de direita, antivitimista, inimigo do politicamente correto, livre”, entrou de centroavante na área da negritude. Além de contrário à “racialização” das políticas afirmativas, trabalha para consagrar um time de negros conservadores como heróis nacionais.
Na escolha, errou a mira. Deu o nome de André Rebouças ao prédio sede da fundação, com a justificativa: “Rebouças foi abolicionista, monarquista e brilhante engenheiro. Orgulho do Brasil!”. De fato. Figura resplandecente, merecedor de homenagens mais robustas que esta e as até hoje prestadas. O que não merece é ser apropriado por governo que é seu oposto.
A começar pelo gosto musical. Enquanto a família presidencial canta rimas chulas, Rebouças apreciava o canto lírico. Foi ele a espinha do movimento abolicionista, trabalhou pela expansão dos direitos que este governo cassa.
Seu ideal era a “democracia rural”, a generalização da pequena propriedade, nada a ver com alianças com grandes proprietários incineradores de mata. Professor da Politécnica, via a educação como meio de civilização, nas antípodas da política governamental para as universidades. Rebouças foi um reformador, os bolsonaristas são reacionários.
Para encarnar sua utopia regressiva, poderiam pinçar o antagonista de Rebouças, o Barão de Cotegipe. Eminência do Partido Conservador, governou o país a porrete, pondo a polícia para caçar os abolicionistas e os que fugiam do cativeiro, enquanto fazia vista grossa para milícias que esfolavam oposicionistas.
O Barão, ao contrário de Sérgio Camargo, nem se via como negro, o que, ao menos, o impedia de falar em nome deles.
Mas antes Rebouças que Cotegipe. O nome do abolicionista na fachada denunciará, por contraste, as práticas ao estilo do escravista, que vigem da porta para dentro.
Além da batalha das mentes, há o front dos bolsos. Aí o governo deixa correr a miraculosa iniciativa privada. Pois bem, Luiza Trajano, empresária liberal como Rebouças, converteu o princípio em prática. Em vez de esperar política pública que corrija a desigualdade racial, a dona do Magalu imbuiu-se da máxima do empreendedorismo e pôs mãos à obra: abriu emprego apenas para negros.
O que desapontou muitos liberais é que não o fez para ofícios de limpar e servir, a chamada é para cargos de comando. Uma juíza logo reclamou. É que, se emulada, como vai sendo, criará competição no topo da hierarquia social. Lá nos postos de mais renda, prestígio e poder, onde a supremacia branca é inconteste.
O governo, como o grosso da sociedade brasileira, é mais hierárquico que liberal, não entoará loas à Magalu. Como os projetos de Rebouças, o da empresária é o avesso do bolsonarismo. Corre o risco dos meninos do presidente lhe dedicarem uma de suas musiquinhas.
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