Renata Cafardo, O Estado de S.Paulo
16 de setembro de 2020 | 11h00
Quando o Whatsapp de Mariana* chegou a 5 mil mensagens não respondidas, a mãe teve certeza de que algo estava errado. Aos 12 anos, a menina dizia que não via “saída para sua vida”, chorava sem razão clara e tinha dores de barriga constantes. Passou a se recusar a assistir às aulas online da escola e acreditava que era a única que não conseguia aprender daquela nova maneira, imposta pela pandemia. A mãe não a deixava mais sozinha no quarto com medo de suicídio. Ao procurarem um psiquiatra, Mariana* teve em maio o diagnóstico de depressão e foi medicada. Só há poucos dias, ela pegou o livro para estudar pela primeira vez desde então. “Eu chorei ao ver. Mas para as aulas pelo computador ainda não conseguiu voltar”, conta a mãe, uma dona de casa do interior de São Paulo.
Adolescentes e pré-adolescentes são um dos grupos mais afetados quando se fala em saúde mental durante o isolamento social, acreditam especialistas. A identidade deles se forma pelo grupo, pelo outro. E quando o outro está longe, isolado também, muitos vínculos acabam ruindo. Foram-se ainda as festas, as conversas nos intervalos das aulas, os momentos de experimentar a independência, na escola ou em qualquer lugar longe da família. É a balada roubada, como bem definiu em live sobre o tema a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Uma pesquisa publicada no Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry concluiu que “crianças e adolescentes são mais prováveis de ter altas taxas de depressão e ansiedade durante e depois de período de isolamento”. Os pesquisadores analisaram 83 estudos sobre o assunto, publicados entre 1946 e 2020.
Outro trabalho, feito na China em abril, mostrou que 22% dos estudantes declararam ter sintomas depressivos durante a quarentena e 18% disseram ter se sentido ansiosos. Os índices são superiores ao que se identificava antes da pandemia. No Brasil, pesquisa da Fundação Lemann e Itaú Social mostrou em agosto que 77% dos estudantes estavam tristes, ansiosos, irritados ou sobrecarregados.
“Eu sou um fracasso”, diz Mariana*, ao ser perguntada por que se sente triste. “Às vezes sou muita chata, acho que magoo todo mundo”. A menina, que perdeu o pai aos 4 anos, fazia terapia antes da pandemia e já tinha um quadro de ansiedade. Mesmo não tendo se adaptado ao ensino remoto, ela morre de medo de voltar à escola porque teme contaminar a mãe. “Claro que neste momento de pandemia a gente espera reações emocionais, mas não persistentes. Quando se tenta algo positivo e não funciona ou o adolescente não se interessa por nada, é preciso ficar atento”, diz o professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Universidade de São Paulo (USP) Guilherme Polanczyk.
Entre os outros principais sintomas da depressão estão baixa autoestima, sensação de inutilidade, irritabilidade, pensamentos sobre morte, alterações de sono e apetite e até físicas, como dores e enjoos. Polanczyk é o coordenador da pesquisa Jovens na Pandemia, feita no Hospital das Clínicas, que pretende identificar os efeitos do momento atual na saúde mental por meio de um formulário online preenchidos pelos pais. O grupo espera receber cerca de 10 mil respostas e poder auxiliar as famílias depois.
A administradora Aurora* conta que o filho Marcos*, de 17 anos, pediu ajuda há cerca de um mês. “Ele não aguentou tanta solidão”. O adolescente, que era muito sociável, passou a estudar apenas por meio de vídeos gravados pelos professores, já que a escola promoveu poucos encontros online. “De repente a rotina dele sumiu, o contato sumiu, não via professor, não interagia, não ouvia perguntas dos colegas, o mundo sumiu completamente”, diz a mãe.
Ele começou a não dormir, se sentir feio, burro e sem amigos. Levado ao psiquiatra pela primeira vez na vida, Marcos* foi medicado porque estava com sintomas depressivos e chegou a falar de suicídio com o médico.
Câmeras fechadas
Não há pesquisa ainda que mostre o aumento de casos de depressão, ansiedade, automutilação ou suicídio durante a pandemia do coronavírus, mas psiquiatras relatam aumento de procura de adolescentes. “Esses casos já vinham num crescente e, com certeza, o isolamento social contribui para isso”, diz o psiquiatra da infância e da adolescência e médico colaborador do Programa de Transtornos Afetivos na Infância e Adolescência do HC, Miguel Boarati. “A tendência do adolescente é se isolar do grupo familiar e ficar com os amigos”. Agora, o que acontece é o contrário.
O médico também acredita que a falta de escola e a mudança para o ensino remoto contribuem para a situação. Há diminuição do contato com colegas, professores e algumas vezes até mais cobrança, provas e exercícios para compensar a falta da aula presencial.
As escolas e professores, por outro lado, se ressentem de poder ajudar pouco os alunos com dificuldades emocionais nesse momento de distanciamento. Pesquisas mostram que os docentes são essenciais para identificar questões na saúde mental dos estudantes, casos de abuso, de violência doméstica. “Na sala de aula presencial ou no intervalo estávamos sempre observando. Agora, por mais que você peça, eles fecham a câmera”, diz a supervisora pedagógica da Escola Vereda, no ABC paulista, Patricia do Nascimento Carvalho.
Ela conta que muitos pais passaram a relatar problemas de ansiedade e depressão durante a pandemia. Com o gancho do setembro amarelo, campanha de prevenção ao suicídio da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Conselho Federal de Medicina, a escola criou um projeto para que os alunos possam falar de seus sentimentos nas lives.
Metáforas da quarentena
A frustração com planos de viagens, formaturas e festas, que foram se perdendo ao longo do ano, causa mais ainda a sensação de incerteza. “A perspectiva de tempo para o adolescente é diferente, por uma questão cognitiva. Um ano é um tempo enorme para eles, sentem que muitas coisas estão sendo perdidas, o que se torna algo muito estressante”, diz Polanczyk.
Marina Marcondes, de 17 anos, conta que tinha uma grande viagem para a Amazônia marcada com a escola para este ano, esperada desde que era criança. “Fiquei muito chateada, ainda estou chateada, mas sou otimista e tento pensar que as coisas acontecem por alguma razão”, diz a menina, que é aluna do Colégio Santa Cruz e participou de um projeto da escola para expressar a quarentena em fotos.
Ela registrou um cubo mágico com as faces viradas, o que, para ela, representa a incerteza desses tempos. “As fotos revelam muito do que os alunos estão vivendo, a partir disso me aproximei deles, procurei alguns para conversar”, diz o orientador do ensino médio do Santa Cruz, Bruno Weinberg, que propôs o projeto. Em uma delas, Manuela Freire, de 16 anos, registra a sombra das suas mãos imitando um pássaro e expressa no nome da foto a vontade da adolescente há meses em casa: “me leva junto”.
*Nomes fictícios
Crônicas da quarentena
Alunos do 1º ano do ensino médio da Escola da Vila produziram textos em que falam da quarentena para uma proposta de Língua Portuguesa. Não necessariamente relatam um sentimento real do autor.
Já faz algum tempo pelo que pude perceber que conto os dias assim, “tal dia de isolamento”, pois me esqueço com facilidade em que dia estamos, em que mês, em que hora. Só sei me guiar pela quantidade de tempo que aqui estou presa. Contar o tempo pelo que ele costumava ser também me parece errôneo, aqui dentro as coisas definitivamente são mais devagar do que lá fora, e digo isso porque mesmo tendo se passado menos de um mês, parece que estamos nesta lamentável situação há algumas décadas. (texto de Isabella Brandão Turquetti Sauaya Pereira, no 25º dia de isolamento)
A única certeza que tenho é que precisamos ser suficientes para nós mesmos neste momento, porque tudo está ainda mais incerto, nunca sabemos o dia de amanhã. E eu, que tenho quase a necessidade de manter o controle de tudo em minhas mãos, me veria quase completamente angustiada com toda essa incerteza, a não ser por uma suave tranquilidade que me vem ao perceber uma certa beleza oculta nisso tudo. (texto de Julia de Carvalho Galvão)
Às vezes, em meio aos móveis do meu quarto, já cansados da minha patética presença, penso seriamente em escalar a minha minibiblioteca, que contém somente os livros que me aquecem o coração, e arrancar a rede da janela, segurar firme nas bordas das paredes, impulsionar o corpo para frente e para trás, para frente e para trás, e, enfim me juntar com esses bem-te-vis que me veem tão mal pelas frestas de seus olhares mais concentrados no próprio voo do que na minha presença inanimada. (texto de Marina Zilles)
Todos os objetos do meu quarto guardam uma memória e uma história vivida. A única exceção são as roupas novas que recebi como presente de aniversário, dias antes do início da reclusão. Por conta da quarentena, elas terão de esperar no guarda-roupa para estrearem em uma festa. Essas ainda vão construir a sua história, espero que feliz. (texto de Miguel Reis)
Nenhum comentário:
Postar um comentário