sábado, 19 de setembro de 2020

Sérgio Rodrigues Chamem a Janete Clair!, FSP

 

Quando a trama do mundo deixa de fazer sentido, é hora de um terremoto

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A história das telenovelas brasileiras registra um momento crucial: aquele em que Janete Clair chega em 1967 à TV Globo para resolver um probleminha técnico de arte narrativa.

A novela das oito que estava no ar, “Anastácia, a Mulher sem Destino”, tinha se tornado uma maçaroca de tramas e subtramas folhetinescas que aborrecia o público. Os personagens eram mais de cem. A audiência afundava dia a dia.

A solução encontrada pela autora ficou famosa: um terremoto matou a maioria dos personagens, e a turma que sobrou deu um salto de 20 anos para o futuro. A audiência subiu. Janete começava a se transformar em rainha do gênero.

O caso de “Anastácia, a Mulher sem Destino” me veio à lembrança quando pensava em como a novela Brasil —subsidiária da novela Mundo, que também anda mal— dificulta a tarefa de acompanhá-la.

Mundo tem um pano de fundo sombrio, a ameaça apocalíptica representada por um colapso climático —boa premissa. Depois a coisa desanda.

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Rola uma pandemia aleatória. Multidões decidem que é uma boa hora de enlouquecer, brigar com a razão e os fatos. Muitos se entrincheiram em tribos armadas que se odeiam umas às outras.

Digamos que, até aí, vá lá. Um roteiro pesado e tenso, mas talvez fosse possível tocá-lo em frente com o tempero de um ou outro alívio cômico e uma boa redenção no final. Mas nosso riso tem tendido ao histérico, e redenção não se vê no horizonte.

A novela Brasil é ainda pior. Tem personagens demais entrando e saindo de cena, muitos deles clichezentos, estereotipados. A qualidade intelectual e moral de grande parte dos protagonistas, coadjuvantes e até figurantes despencou.

As subtramas são ridiculamente variadas. Como dar conta de cenas e temas disparatados como piadinha sexual com criança, campanha de reabilitação de Stálin, teoria da conspiração para pessoas com QI sub-55, pornografia salarial da Justiça brasileira, Pantanal em chamas e fosfina em Vênus?

Pitadas de violência costumam levantar o ibope, mas a justa medida foi ultrapassada faz tempo. Ninguém aguenta ver todos os dias cenas de assassinato de biomas, reputações e pessoas cujo único crime é ter a pele escura.

Entende-se a vontade de mudar de canal quando todas as injustiças, desigualdades e violências ancestrais, abafadas por séculos, explodem com violência gráfica —e as instâncias que poderiam mediar esses conflitos se revelam miragens.

Não discuto que cada um desses fios, bem trabalhado, rendesse uma bela história. O problema é virem todos juntos, embolados contra um fundo, o das redes sociais, que favorece a proliferação de vozes e o diálogo de surdos.

Impossível evitar um efeito de confusão irremediável. A fadiga cognitiva e emocional do espectador, provocada pelo excesso de acontecimentos, é um dos abismos em que os contadores de histórias correm o risco de cair. (O outro é o desinteresse provocado pela escassez de acontecimentos.)

Analisar os fatos do mundo do ponto de vista da arte narrativa tem validade apenas pitoresca, é claro. A história da humanidade não é novela, não se planejam guinadas por causa da audiência nem há um cérebro dramatúrgico por trás de tudo.

Mesmo assim, quando perdemos a capacidade de acompanhar a trama do mundo com um mínimo de compreensão, empatia e esperança de felicidade nos próximos capítulos, pode ter chegado a hora de um terremotinho redentor básico. Chamem a Janete Clair!

Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

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