quarta-feira, 16 de setembro de 2020

No Triângulo Mineiro, 'fogo este ano está desanormal', FSP (primoroso)

 José Hamilton Ribeiro

Jornalista, é autor dos livros “O Gosto da Guerra”, sobre sua experiência no Vietnã, “Pantanal, Amor Baguá”, sobre o Pantanal, e “Música Caipira - As 270 Maiores Modas”.

UBERABA

Com o fogo que lá vinha da linha do trem, já eram três focos de incêndio. O primeiro surgiu da cana do vizinho em frente e tinha arrasado os piquetes de pastagem —foi embora a garantia do leite de amanhã.

Depois de queimar a reserva da Escola Agrotécnica ali do lado, outra língua de fogo estava a ponto de lamber o curral e as vacas leiteiras deitadas por ali, ruminando, com bezerros ao pé.

A estrada que passa em frente escorava o fogo, para não deixar ir na direção das vacas e da casa (com crianças dormindo lá dentro), mas a qualquer hora a língua ardente podia pular na direção das jabuticabeiras e dominar todo o quintal, com as outras fruteiras e uma porca engordando lá no fundo, sem poder fugir.

A terceira ponta de fogo vinha da direção da lavoura. A fumaça ardia nos olhos e tudo encobria, não havia céu nem horizonte. Uma pessoa pouco acostumada se perdia, sem visão nas variantes da estrada.

Carlos Henrique Irineu, 62 anos, há 30 anos tocando ali uma parceria na tiração de leite, a vida toda na roça, estava em dúvida:

"Isso não é coisa de Deus!"

Estava ansioso também com outra coisa:

"Parece uma maldição. O diabo desse fogo vem sempre junto de uma ventania que ninguém controla."

Se fosse só o fogo, a gente arranjava um jeito de lidar, mas com o vento tão forte você acode num ponto, ele sai em outro, diz Carlinhos, como é conhecido nesse ponto, na região de Uberaba.

Um seu amigo diz que o fogo, este ano, está “desanormal”.

Aquela manha de apagar fogo batendo facho, feito de plantinhas compridas com muitas folhas, não está valendo diante da força da língua quente e do vento.

Existe o recurso do trator. Carlinhos usou o seu para reforçar os aceiros, aumentar curva de nível, enterrar cupins. Está de plantão para, se for o caso, abrir uma picada em cima da hora, juntar pau seco para fazer fogo de encontro, arrebanhar terra de cupinzeiro para cobrir algum foco. Último recurso é apelar pela solidariedade dos vizinhos.

Pessoa de bom temperamento, sempre disposto a emendar uma prosa encostado na cerca, Carlinhos é prestativo e não foi só uma vez que ajudou vizinho com trator ou com a força de seu braço. Mas, pelo que está vendo desse fogaréu que atravessa brejão e passa colina, não respeitando cerca nem divisa, todo o pessoal desses lados da Escola Agrotécnica está com problema igual ao seu, ou pior.

Seu Wilson Ferreira, do sítio em frente à fazenda Forquilha, de que Carlinhos é parceiro no leite, teve toda a propriedade queimada. O que era um pasto robusto, como reserva para os tempos de seca, virou um chão preto de tição e toco queimando. Seu Wilson precisou contratar caminhões e levar o gado a outro município.

Dr. Márcio, vizinho de cerca pela esquerda, teve todo seu canavial esturricado, de um fogo que poderia ter começado na linha do trem. Prejuizão! A outra divisa é com a Escola Agrotécnica, do governo federal. Nesse momento os professores devem estar avaliando os prejuízos e discutindo como continuar a vida a partir dali.

Aos 62 anos –começando a ficar velho, como diz–, Carlos Henrique lida com fogo desde menino. O pai deixou umas terras na comunidade da Serrinha e ele conta que, um dia, vai cuidar delas e viver disso.

De primeiro, diz ele, o fogo vinha no tempo certo, e a gente sabia bem o que fazer com ele. Era um acontecimento normal na rotina da roça, não virava notícia de TV (“e nem tinhaTV”...). Hoje ele vem e você não sabe mais direito o que fazer.

"Acho que o chão está mais quente, o ar, o vento, tudo mais quente. E outra: parece que está demorando mais para chover. Uai, estamos na segunda quinzena de setembro, e desde quando não temos chuva? Nem lembro..."

Carlos Henrique acha que esse fogaréu atual é um aviso da terra.

"Que é que ela está querendo nos dizer? Cadê os profetas?"

Diante do fogo que o ameaçava por todos os lados, Carlinhos consultou um amigo que tem no Corpo de Bombeiros de Uberaba.

"Sabe o que me disse? 'Olha, Carlinhos, temos até agora 43 chamadas de fogo em fazenda. Se for anotar o seu nome, vai ser o 44. Quer insistir?' Desisti."

Mas desse fogaréu todo uma lição se pode tirar, sim, diz ele, por fim.

"O fogo é uma força da natureza! Não é culpado de nada. O homem é que precisa saber como lidar com ele."

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