O texto da Nova Previdência tem pontos positivos e negativos. A despeito da gravidade de nossos problemas fiscais atuais e das iniquidades remanescentes no sistema previdenciário em vigor, a proposta deve ser analisada sobretudo naquilo que supõe e que constrói para o futuro do país.
Nesse sentido, a pergunta a ser feita é menos "qual a economia gerada nos próximos anos", e mais, "quais tendências socioeconômicas o sistema previdenciário desenhado na proposta permitiria acomodar"?
A resposta mais óbvia é o envelhecimento populacional: quanto maior é a expectativa de sobrevida das pessoas após a aposentadoria, maior é o total de benefícios recebidos em relação às contribuições de quem está na ativa.
Para acomodar essa mudança demográfica, os sistemas ao redor do mundo têm sido reformados em três direções: adiar a idade de aposentadoria, reduzir o valor dos benefícios e/ou aumentar a contribuição de quem está na ativa.
Nos casos do aumento da idade mínima, com regra automática atrelada à expectativa de sobrevida, e das alíquotas progressivas de contribuição dos servidores, por exemplo, esse objetivo é cumprido sem prejudicar tanto os mais pobres.
Afinal, a criação de uma idade mínima atinge sobretudo quem hoje se aposenta por tempo de contribuição, ou seja, os trabalhadores que ficaram muito tempo em empregos formais.
Dado o enorme dualismo de nosso mercado de trabalho, os mais pobres já costumam se aposentar por idade (aos 65 anos para homens e 60 para mulheres), pois não conseguem acumular tempo de contribuição suficiente.
O problema é que diversos elementos da proposta não atuam apenas no sentido de se adaptar a mudanças demográficas, e sim a outras tendências —não desejáveis e tampouco inexoráveis— observadas em nossa economia nos últimos tempos, como o desemprego, a queda no grau de formalização das relações de trabalho e um dualismo cada vez maior na relação dos indivíduos com o Estado (educação e saúde privadas versus públicas, etc).
Ao aumentar o tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos, o novo sistema impediria a aposentadoria de uma massa de trabalhadores pobres, sobretudo mulheres, que, além de passar muito tempo no mercado informal de trabalho, também costumam parar de trabalhar por alguns anos para cuidar dos filhos. Hoje as mulheres que se aposentam com um salário mínimo têm, em média, 15 anos de contribuição apenas.
Mas a aparente contradição entre exigir mais tempo de contribuição quando há queda no grau de formalização é denunciada em outro ponto do texto: a ideia é transferir uma massa cada vez maior de trabalhadores com menor tempo de vínculo formal de trabalho da atual aposentadoria por idade (com benefício de um salário mínimo) para o BPC (Benefício de Prestação Continuada), com valor de R$ 400 até os 70 anos e de um salário mínimo depois.
Do outro lado do abismo, a reforma abre espaço para que os mais ricos optem por poupar exclusivamente para a sua própria aposentadoria por meio de um sistema de capitalização de caráter obrigatório para quem aderir (em vez de apenas complementar), reduzindo assim a base de arrecadação do sistema de repartição e, eventualmente, o valor dos benefícios.
No dualismo abissal do Brasil previsto e estimulado pela nova Previdência, conviveriam, de um lado, os idosos mais ricos, que conseguirem poupar no regime de capitalização, e os mais pobres, que passariam a depender de uma espécie de renda básica não universal.
Laura Carvalho
Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".
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