O que você faz quando um parente seu vira um boneco de cera? Foi isso o que aconteceu com um senhor que conheci há quase vinte anos. Vamos chamá-lo de Ernesto*. De origem humilde, Ernesto ainda vivia no campo quando começou a mudar seu jeito de ser. Foi deixando de trabalhar, de conversar e em poucos dias, para espanto da família, parou totalmente de se mexer. Virou uma estátua. Parecia um boneco de cera – se colocavam seu braço para cima ele ali ficava. Se o sentavam, ele permanecia sentado. Não se alimentava mais, fazia as necessidades na roupa.
Desesperados, familiares o levaram para o pronto-socorro. Os médicos não encontraram nada anormal em seus exames de sangue, e a tomografia mostrava que o cérebro não tinha nenhuma alteração visível. Ernesto foi diagnosticado com catatonia, uma perda de movimentos voluntários, e encaminhado para o tratamento psiquiátrico. Foi quando o conheci. Nunca me esquecerei de que fomos ajeitá-lo no leito e, ao retirar o travesseiro, a cabeça continuou erguida, com o pescoço fletido, como se algo ainda a apoiasse. Foi a única vez que vi alguém com o “sinal do travesseiro”.
A catatonia é uma das principais indicações da eletroconvulsoterapia (ECT), ou eletrochoque. A maioria das pessoas não sabe, mas esse tratamento nunca foi abandonado, nem no Brasil nem no mundo, por ser uma das formas mais rápidas e eficazes de tratar determinadas condições. Foi o que prescrevemos para o senhor Ernesto com autorização de sua família. Ao final daquela mesma semana, após três sessões, ele estava de volta, sem qualquer resquício das graves alterações que apresentara até poucos dias.
Manchetes enviesadas vêm dando a entender que o governo quer ressuscitar o eletrochoque nesse país que só anda para trás, numa marcha conservadora e retrógrada. Nada mais enganoso. Qualquer fonte isenta será capaz de atestar que esse tratamento continua sendo usado globalmente,  respaldado em sua eficácia por estudos feitos em universidades e centro de pesquisa independentes mundo afora e referendado por comitês de ética à esquerda e à direita. Não é só nos EUA de Trump ou no Brasil de Bolsonaro que a técnica é utilizada, mas também no Uruguai de Pepe Mujica e Tabaré Vázquez, ou em Portugal de Marcelo Rebelo de Sousa, para ficar em um par de exemplos mais emblemáticos dos dois lados do espectro político.
A eficácia em casos de depressão grave, refratárias a outros tipos de tratamento, é inquestionável quando em vez de opiniões ligeiras os olhos voltam-se para os dados. A velocidade de melhora é fundamental em casos de alto risco de suicídio – problema que muitos gostam de apontar, mas poucos têm sugestão de solução eficaz. O principal efeito colateral é a perda de memória recente que atinge as horas próximas às sessões de ECT, normalmente muito menos prejudicial do que os sintomas da doença sendo tratada. Existe risco de morte? Sim, igual ao de qualquer procedimento que envolva anestesia – entre 2 e 10 casos a cada 100.000. Risco inferior ao de morte por suicídio nesses pacientes.
E para que não se atribuam esses dados a um conflito de interesses por serem produzidos por psiquiatras, a própria Organização Mundial da Saúde reconhece a importância de sua utilização em casos graves e refratários. E a Cochrane, organização independente e sem fins lucrativos que reúne dados de pesquisas no mundo todo, enfatiza seu diferencial de rápida melhora em casos de esquizofrenia.
Por tudo isso eu acho triste pessoas que se dizem a favor da humanização lutarem contra a possibilidade de pacientes usarem um tratamento que pode ser aplicado de forma ética com benefícios cientificamente comprovados em casos extremos. Negar essa possibilidade terapêutica me parece indefensável.
Espero que seja apenas ignorância e não má fé. Porque se for só ignorância há esperança de que as evidências prevaleçam sobre as opiniões. Já se for má fé, não tem jeito: os argumentos sempre se multiplicarão na mesma medida em que se acumularem as evidências.

World Health Organization. Out of the Shadows: Making Mental Health a Global Development Priority. Washington DC, USA, 2016.
Tharyan P, Adams CE. Electroconvulsive therapy for schizophrenia. Cochrane Database of Systematic Reviews 2005, Issue 2

* Nome e detalhes foram modificados garantindo o anonimato.

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Leitura mental
Para quem quiser se manifestar com um pouco mais de propriedade sobre o tema, sobretudo no caso da depressão, vale a pena conhecer esses dois lançamentos do escritor Andrew Solomon pela Companhia das Letras. O demônio do meio-dia é relançamento na verdade, uma nova edição do livro publicado pela primeira vez há quase duas décadas, mas que nesse período não perdeu o protagonismo como uma obra essencial para quem lida com a depressão. Solomom narra sua batalha contra a doença (passando pelo eletrochoque, inclusive, que ele mostra ser capaz de salvar vidas), ao mesmo tempo em que traz relatos e histórias de outros pacientes, traçando ao mesmo tempo a história científica desse transtorno que em pouco tempo será o mais incapacitante do mundo. O segundo, Um crime da solidão, reúne artigos publicados pelo autor nos quais ele reflete sobre o suicídio, tanto do ponto de vista existencial como clínico. Ele trata do assunto com a propriedade de quem já viu o abismo de perto. Ao contrário da maioria dos palpiteiros de redes sociais.