sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Viajar sem o relógio no braço tira a naturalidade do gesto de consulta à hora, FSP

Sempre haverá encanto em constatar, num gesto imperceptível, que o tempo está se escoando

No domingo passado, pela primeira vez em incontáveis anos, surpreendi-me indo ao aeroporto sem um relógio no pulso. A caminho de Curaçau, no sul do Caribe, vejo-me embarcando num avião (onde costumo consultá-lo o tempo todo) para passar quase uma semana sem conseguir ver as horas com um mero torcer de antebraço.
O tique de surpreender as horas com um canto de olho, com a distraída naturalidade de um bocejo, é antigo, especialmente útil (mas não só) durante o trabalho —seja numa mesa da redação, ou no espaço entre reuniões, ou ao longo de um extenso menu-degustação, e mesmo num barco conhecendo ilhas sobre as quais vou escrever.
Um hábito que já foi inovador e quase excêntrico, pouco mais de um século atrás, mas que vai se tornando obsoleto, nos dias de hoje, à medida que consultar as horas no telefone celular vai se tornando um gesto tão usual —e igualmente espalhafatoso— quanto o de retirar do bolsinho da calça ou do colete o grande relógio do passado preso por uma corrente.
Nos dois casos, o de antes e o de agora, se requer um gestual mais intenso e aberto, diferente da discrição do soslaio sobre um pulso tenuamente girado alguns mínimos graus.
Não foi a discrição, mas a praticidade, o que levou à criação de um dos primeiros relógios de pulso, nascido da colaboração entre o inventor brasileiro Santos Dumont e o relojoeiro francês Louis Cartier. 
Ao pilotar suas pioneiras máquinas, o aviador não queria tirar as mãos dos controles para consultar as horas escondidas na algibeira. A solução surgiu em 1904, quando Cartier presentou o amigo com o primeiro relógio de pulso de sua marca.
Invenção que em meros cem anos começou a encontrar seu ocaso com os celulares. Mesmo agora, com monitores de pulso para controlar os minicomputadores de bolso que nos escravizam, um gesto mais intenso costuma ser necessário, para ligar a luz da tela que normalmente está em repouso.
Ilustração de Maíra Mendes para coluna Josimar Melo de 14/2/19
Maíra Mendes
 
Na vida, consultar rapidamente as horas é algo permanente mesmo fora do trabalho —ao menos para mim. 
Em quantos minutos chega o táxi (e, portanto, em que momento exato saio de casa?). Quando o garçom tirou o último prato (e, portanto, quanto tempo interminável está demorando para chegar o próximo?). Há quanto tempo estamos nesta conversa cheia de rodeios (e, portanto, quanto tempo falta para acabar o drinque; e, portanto, quanto tempo tenho para arriscar um beijo sem ser cedo demais para ser preso por assédio nem tarde demais para ter perdido a magia do momento?).
O discreto girar do pulso e o átimo em que o piscar de olhos é simultâneo ao giro das pupilas para baixo podem ser velozes o bastante para que não causem uma impressão de tédio às pessoas em volta; ou então, suprema arte, podem ter a lentidão calculada para serem suficientemente percebidos ao exprimir, ser parecer grosseiro, que, bem, acho que por hoje chega, hora de ir.
São nuances que fico imaginando se sobreviverão às novas gerações. É por elas, aliás, que me encontro aqui de pulso desnudo no Caribe. Dias antes de viajar, meu filho pequeno reiniciou as aulas, e um comunicado da escola especificava que as crianças deveriam levar relógios de pulso naquelas primeiras semanas, pois aprenderiam a ver as horas.
No último momento retirei o meu do braço e o presenteei. Um relógio usado, suíço, mas de plástico, sem grande valor —ademais, enorme para o pequeno pulso infantil. Ainda assim, ficou orgulhoso e emocionado em ostentar o desproporcional patecão.
Já havia transmitido a ele os rudimentos da leitura analógica das horas; e não sei se, fascinado pelas telas que o cercam (mas não na escola, e bem controladamente em casa), ele por muito tempo ainda verá graça naquele tosco equipamento.
No entanto, não deixo de desejar que sim. A tecnologia —que um dia reduziu o relógio de parede para que coubesse no bolso, e mais tarde o adaptou aos pulsos— certamente criará formas ainda mais instantâneas e originais de vermos as horas.
Mas sempre haverá algum encanto em —além de checar a passagem do tempo— conseguir demonstrar com cortesia para um chato que é hora de partir; ou constatar, num gesto imperceptível, que o tempo está se escoando e que é agora, nem um segundo a mais, o momento de roubar o beijo que, de outra forma, o tempo poderá roubar para sempre de você.
Josimar Melo
Crítico de gastronomia, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurantes, bares e serviços em São Paulo.

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