A história mostra o que multidão desejosa de vingança autoriza quando estimulada pelo anonimato
A história revela que conhecer e respeitar o que é “próprio para hoje” tem sido importante para viver com relativo conforto em todos os momentos de todas as sociedades.
As consequências desse mecanismo sobre a conduta das multidões só começaram a ser analisadas no final do século 19 com o aumento da velocidade da difusão das informações pelos jornais.
O “próprio de hoje” são as “modas”: do pensamento (as ideologias), da moralidade, da manifestação artística, da participação nas mídias sociais.
A experiência sugere que, na multidão, o indivíduo tende a perder o sentido da sua individualidade, o que o leva, às vezes, a comportamentos antissociais. Um estudo antigo (Le Bon, G. – “Psychologie des foules”, 1895) sugere que a transformação psicológica do indivíduo imerso na multidão é produzida quando ele entra numa “onda” protegida pelo anonimato e induzida pela sugestibilidade e pela homogeneização de crenças e costumes.
Transforma-se num instrumento capaz de perpetrar os mais irracionais e bárbaros sofrimentos aos que insistiram em conservar a sua “individualidade”. Visto sob o ângulo do politicamente correto, Le Bon seria hoje condenado por seu elitismo e racismo.
Nos últimos 130 anos as pesquisas empíricas relativizaram suas conclusões e deram origem a uma sofisticada Psicologia das Multidões. Creio, entretanto, que ele ainda contém um resíduo infinitesimal de verdade, principalmente porque no nosso “tempo próprio”, as “novas multidões” reveladas nas mídias sociais, assumiram um poder “virtual” que nenhum poder “real” constituído pode controlar.
De fato, o espantoso protagonismo das mídias sociais nas eleições democráticas e nos plebiscitos recentes —produto do avanço da tecnologia— sugere o nascimento de “tempo próprio”, no qual o mundo corre o risco de regredir a trágica aventura de “democracia direta”, controlada por tuiteiros que mal disfarçam a aparentemente “nova”, mas velhíssima ideologia, que a “igualdade” deve preterir a “liberdade”. Platão e Aristóteles, há 2.400 anos, e Tocqueville, há 190, já sabiam para onde leva tal “progresso”.
A história (particularmente a francesa) está aí para mostrar o desastre que uma multidão sofrida e desejosa de vingança pode autorizar quando estimulada pelo anonimato. Ela revela aonde termina o poder absoluto quando ele tenta, generosamente, construir políticas sociais radicalmente democráticas e republicanas inspiradas no “amor à igualdade” de bem-intencionados e incorruptíveis Robespierres.
Destruída a “civilização injusta” e esgotado o movimento sob o peso da desgraça, sempre chegam os Napoleões...
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Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.
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