As conseqüências virtuosas e danosas desse paradoxo são por demais conhecidas e evidentes
Engenharia brasileira vive paradoxo tecnológico
por Álvaro Rodrigues dos Santos
Ainda que, por decorrência lógica, imagine que questão aqui tratada deva expressar-se de forma similar nos mais variados campos da engenharia brasileira, devo, por segurança e coerência, restringir seu alcance ao campo da Engenharia Geotécnica, área em que milito profissionalmente já há mais de 5 décadas.
Peço também a compreensão do leitor para o fato de não mencionar nominalmente projetos, obras, empresas contratadas e contratantes que de alguma forma ilustram e participam do cenário tecnológico que descrevo e abordo.
O paradoxo referido no texto refere-se à franca convivência em nossos tempos de obras e serviços que expressam a altíssima qualidade tecnológica da engenharia geotécnica nacional, sua incrível capacidade de atualização e criação nas mais refinadas técnicas de engenharia, pelo que é reconhecida nacional e internacionalmente, com obras e serviços de incrível e agressiva pobreza tecnológica, nos quais cometem-se erros que já seriam considerados crassos e primários há muitas décadas, o que nos faz crer que tratem-se de empreendimentos conduzidos sem a necessária capacitação e responsabilidade profissional que naturalmente exigiriam.
As conseqüências virtuosas e danosas desse paradoxo são por demais conhecidas e evidentes: pelo lado virtuoso, a demonstração cabal da competência da engenharia nacional em protagonizar as mais avançadas e exigentes obras de engenharia que se apontam como necessárias ao desenvolvimento nacional, pelo lado danoso, o insucesso técnico, os prejuízos financeiros e econômicos para contratantes e para a sociedade, as perdas humanas, os desastres ambientais, a deterioração da imagem da engenharia brasileira, a perda de mercados nacionais e internacionais…
Como explicar esse paradoxo? Certamente haverá várias variáveis nessa equação, mas arrisco a identificar uma delas como, talvez, a de maior significância.
Na verdade, os novos e positivos patamares do crescimento nacional atingidos há alguns poucos anos atrás encontram o poder público planejador, contratante e fiscalizador abalado por fenômenos estruturais recentes que muito o fragilizaram tecnologicamente e gerencialmente para o cumprimento desses essenciais atributos.
O processo de privatização de empresas públicas nas áreas de energia, telecomunicações, transportes e infra-estrutura em geral tem implicado na dissolução de equipes técnicas de altíssima capacitação e experiência constituídas nessas empresas ao longo de décadas, assim como uma temerária fragilização tecnológica de toda uma cadeia empresarial privada mobilizada por contratação das estatais e implicada na produção de estudos e projetos, na implantação dos empreendimentos e no fornecimento de insumos gerais, equipamentos e componentes. Não se está aqui colocando o processo de privatizações em questão, mas sim focando-se uma sua decorrência que provavelmente não tenha sido devidamente considerada
Essas equipes técnicas, formadas no âmbito da implantação de empreendimentos da mais alta complexidade tecnológica, e contando com o entusiasmado e estratégico suporte de instituições públicas de pesquisa tecnológica do país e da academia, foram responsáveis pelo desenvolvimento de uma engenharia nacional aplicada às características econômicas, sociais e fisiográficas próprias de nosso país e de suas diferentes regiões, guindando-a, reconhecidamente, ao nível da melhor Engenharia do primeiro mundo. De outra parte, as várias empresas privadas brasileiras de consultoria, projetos e serviços em engenharia que se formaram a partir das demandas das empresas públicas, constituíram suas próprias equipes técnicas, respondendo induzidamente ao mesmo patamar de qualidade.
Do ponto de vista da capacitação tecnológica da administração pública contratante, cumpre lembrar que nos órgãos da Administração Direta o processo de enfraquecimento tecnológico, no caso dentro de uma outra, mas também perversa lógica, iniciou-se ainda nos anos 50, e de sua decorrência órgãos públicos que no passado constituíram-se em verdadeiras escolas da engenharia, hoje não são mais que meras estruturas burocráticas contratantes sem nenhuma consistência técnica.
Ao se analisar o processo de esvaziamento tecnológico da administração pública direta e indireta é fundamental considerar o clássico e estratégico papel do poder público contratante e fiscalizador como indutor da qualidade das empresas contratadas e mobilizador da empresa nacional fornecedora de projetos, serviços e insumos. Bom lembrar que cabe ao Estado contratante a missão de fixar já nos termos licitatórios as linhas e concepções tecnológicas básicas que mais interessarão ao país no que se refere ao aproveitamento máximo de suas vantagens comparativas e de sua estrutura empresarial. Perde-se a autonomia dessa decisão quando se perde a competência técnica para defini-la.
Não há outro caminho, é premente a necessidade de governo e empresa nacional, assim como a Engenharia Nacional através de suas entidades, discutir e refletir sobre essas questões. Sem quaisquer partidarismos, apenas com a disposição que a defesa desse estratégico patrimônio tecnológico tão nobremente construído exige.
Considere-se ainda a crescente predominância que a gestão financeira e comercial vem tendo sobre gestão técnica na condução dos empreendimentos de engenharia. Essa ditadura da gestão comercial, em sua obsessão por redução de custos e maximização de lucros, trabalha com diversos expedientes: economia máxima em estudos geológicos e geotécnicos, extensa terceirização de serviços essenciais, redução de exigências de qualidade com materiais e serviços envolvidos na execução geral do empreendimento, o que vai implicar em uma aceitação temerária de maiores riscos técnicos no decorrer da execução e da operação das obras. Esses expedientes vão inexoravelmente corromper radicalmente o ambiente de frente de obra, fazendo com que as diretrizes de ordem financeira e comercial superem em importância cultural e hierárquica os princípios básicos da segurança e da boa técnica.
No campo das contratações privadas, ou seja, do mercado privado de engenharia, de alguma forma o quadro desenhado se repete. Empreendimentos de enorme conteúdo e performance tecnológica convivem com situações de total ausência de maiores conhecimentos e cuidados técnicos. Tenho sido chamado a avaliar obras e serviços contratados por grandes empresas e grupos privados onde absurdos técnicos vem sendo cometidos. Não nos é difícil testemunhar alguns desses absurdos em simples deslocamentos geográficos e visitas que por qualquer motivo façamos nos mais variados estados do país. Creio que, nesse caso, o fenômeno se explique, não só por uma certa fragilidade tecnológica da empresa contratante, mas por sua busca, ao nível da inconseqüência, do máximo barateamento dos serviços e obras contratados; o que a faz aceitar, e até pressionar por soluções tecnicamente não confiáveis, assumindo assim decisões de elevado risco. As graves decorrências dessa atitude não se fazem por esperar.
Enfim, por certo não será tarefa fácil e pouco trabalhosa, mas impõe-se à engenharia brasileira a histórica missão de dissolver esse atual paradoxo tecnológico, recuperando para si a predominância da virtuosidade já anteriormente conquistada.
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Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos é Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia. Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão”, “Diálogos Geológicos”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico de Elaboração e Uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”. Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia e Diretor Presidente da empresa ARS Geologia Ltda.
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