sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Ibrahim Sued, o 'Turco', foi o mestre de Boechat, Elio Gaspari, FSP

Quem teve a dádiva de trabalhar com ele aprendeu a aprender; seu negócio era notícia

O jornalista Ricardo Boechat, em evento da Folha em 2018
O jornalista Ricardo Boechat, em evento da Folha em 2018 - Adriano Vizoni - 19.fev.18/Folhapress
Elio Gaspari
​​Ricardo Boechat trabalhou com o colunista Ibrahim Sued de 1970 a 1983. Ali se aprendia tudo.
Mesmo no tempo em que tinha um só terno, Ibrahim era um homem bonito, de olhos verdes e porte elegante. Ele reinou no colunismo por quase 20 anos.
Quem teve a dádiva de trabalhar com ele aprendeu a aprender. Seu negócio era notícia. Quando Boechat foi trabalhar em seu escritório da avenida Nossa Senhora de Copacabana, esquina com Siqueira Campos, recebia uma lista de fontes para as quais devia ligar. (Era um tempo em que não existia discagem direta e mesmo uma linha local demorava um bom tempo.)
Diga que é do escritório do Ibrahim Sued, porque se disser que é você, ninguém vai atender.
Todos atendiam, desde o jurista Francisco Campos, autor do preâmbulo do Ato Institucional, à linda e elegante Maria Thereza Castello Branco (ex-Guinle). Ela contava o que vira de sua frisa num concerto no Teatro Municipal com o cuidado de pedir discrição em relação a si própria, coisa rara.
Ibrahim Sued, em foto publicada no perfil de Ricardo Boechat no Facebook em 2015
Ibrahim Sued, em foto publicada no perfil de Ricardo Boechat no Facebook em 2015 - Reprodução Facebook
Vindo do "Bife de Ouro", o restaurante do Copacabana Palace, onde almoçava, Ibrahim entrava no escritório com um humor imprevisível, quase sempre mau. Na entrada desse conjunto de salas, havia uma enorme fotografia de John Kennedy cumprimentando Ibrahim Sued. Isso mesmo, ele era o presidente dos Estados Unidos, mas a figura central da cena era a do "Turco".
Boechat, como os seus antecessores, deveria ter terminado o seu serviço, entregando-lhe duas páginas, talvez três, de notas curtas, com dez linhas, no máximo. A menos que fosse um grande assunto ou a descrição de uma festa, não devia tentar algo mais comprido, pois corria o risco de ser chamado de "editorialista".
Ibrahim lia, cortando as notas que não queria. Às vezes perguntava a fonte e, em alguns casos, passava a faca. A notícia poderia até ser interessante, mas esse comportamento demarcava sua autoridade. A contribuição do ajudante equivalia pelo menos à metade da coluna. A outra parte ficava por conta de Ibrahim. Por volta das cinco da tarde o texto ia para as mãos de Fernando Carlos de Andrade, o terceiro jornalista da equipe, que datilografava (e corrigia) os textos, com cópias em carbono. 
Era um sufoco diário e ao mesmo tempo uma escola. Quem não aprendesse ali faria melhor se mudasse de profissão, até porque as ruidosas reclamações de Ibrahim, injetavam alguma humildade no DNA de suas vítimas.
Em 1965, a coluna noticiou que o escritor francês Jean Cocteau abrira uma exposição em Paris. Ele chegou ao escritório e, calmo, disse: "O Cocteau morreu há dois anos, e o analfabeto sou eu".
O "Turco" era perseguido pela fama de não escrever o que publicava e de não saber português ou qualquer outro idioma. Incomodava-se, mas levava a fama com humor. Quando anunciou que escreveria um livro sobre suas visitas à União Soviética, Sérgio Porto, seu maior algoz, sugeriu que o título fosse "000 Contra Moscou". Esse era o tempo em que James Bond fazia sucesso com o filme "007 Contra Moscou". Sugestão aceita, e "000" ficou.
Ibrahim escrevia direito, sem cuidado algum, porque sabia que seus textos seriam corrigidos pelo fiel "Fernandão". Havia no "Turco" uma disfunção verbal. Certo dia ele produziu a seguinte frase: "O Mike Krimchatowsky está maluco. Disse que durante a guerra derrubou 17 Massachusetts".
Deveria ter dito Messerschmitts, mas pronunciou direito as saladas de letras de Krimchatowsky e Massachusetts.
 
Fechada a coluna, o velho Sampaio (passador das roupas de Ibrahim desde o tempo em que ele tinha dois ternos) saia pela cidade levando as cópias para as redações. Ia de ônibus, puxando a perna comprometida por um AVC. A presença de Sampaio do escritório do "Turco" era uma das mostras de sua enorme generosidade.
Com alguma frequência, Ibrahim levava seu assecla para uma sauna no Copacabana ou para a mesa cativa que tinha no falecido restaurante Le Bec Fin. Era uma roda de amigos onde o pior que poderia acontecer era o aparecimento de um "chumbeta" que puxasse conversa para tentar plantar uma nota na coluna. A paciência do "Turco" esgotava-se.
Ao longo de 13 anos, Ibrahim foi um bom amigo de Boechat. Chamava-o de "Chita", sabe-se lá por quê. Fizeram algumas viagens juntos e as idas a Paris foram memoráveis. Afinal, o filho de imigrante libanês que viveu a pobreza no velho Centro do Rio, era um cavaleiro da "Légion d'Honneur" e desde o dia em que colocou a fitinha vermelha na lapela, nunca mais sentaram-no na Sibéria dos restaurantes franceses.
Boechat aprendeu tudo e, anos depois, tornou-se o principal colunistade O Globo. Sua marca foi a daquele escritório: a notícia pura e simples, se possível, com alguma graça. Na Band, ele acrescentava sua desassombrada contundência com uma naturalidade que, tanto na televisão como no rádio, mostrava que havia ali um grande jornalista. Repórter pode não acreditar em Deus, mas tem uma alma especial.
(O signatário trabalhou com Ibrahim Sued de 1965 a 1967, foi o autor da nota da exposição de Jean Cocteau e  teve a amizade do "Turco" e de Boechat até que eles se foram, um em 1995, o outro na segunda-feira.)

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