José Carlos Dias
Para algumas autoridades, a política não passa de um eterno jogo de palavras, de uma gestão enfadonha de frases contraditórias e longos textos sem sentido. Seria um problema estritamente estético se essas palavras, no final do dia, não determinassem a vida —e também a morte— de parcelas inteiras da população.
Entre todas as versões possíveis do Brasil, há esta que nunca termina de me surpreender: a do Brasil declaratório, que brada sua civilidade enquanto corrói os pilares da democracia por dentro. Foi assim que li a eloquente defesa da erradicação da tortura feita pelo governador João Doria no mesmo texto em que comunica veto integral ao único projeto de lei com capacidade para enfrentar a prática nos presídios paulistas.
A proposta foi aprovada pela Assembleia Legislativa em dezembro, após anos de profundo debate público, com o apoio de 11 partidos das mais diversas vertentes ideológicas. Ela pretendia criar o mecanismo estadual de prevenção e enfrentamento à tortura, um órgão autônomo e independente com a responsabilidade de monitorar espaços de privação de liberdade (inclusive locais de acolhimento de crianças e idosos, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas), elaborar relatórios e propor políticas públicas.
O mecanismo seria formado por peritos selecionados através de edital público com a prerrogativa de acessar esses estabelecimentos de maneira irrestrita e sem aviso prévio —uma característica indispensável para garantir a efetividade e o poder inibitório de suas atividades.
A criação desse grupo especializado respondia de maneira tardia a um compromisso assumido soberanamente pelo Brasil em 2007, quando o país ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Também dava materialidade a uma das 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade, da qual tive a honra de participar, elaboradas para interromper e prevenir graves violações de direitos humanos no Brasil.
Já existem um órgão similar no plano federal e três em funcionamento em outros estados, mas sem capilaridade territorial é impossível monitorar aquilo que acontece em todos os rincões do país —ainda mais em São Paulo, que abriga um terço de toda a população prisional brasileira. Quanto mais fechados os porões, mais espaço para abusos e atrocidades. Esse é um dos aprendizados que o Brasil deve tirar de seu passado.
O projeto vetado reunia, assim, pertinência, urgência e consenso. Não parece ter sido suficiente para convencer o governador, que perdeu uma oportunidade de entrar para história pela porta da frente nos primeiros dias de seu mandato.
O texto do veto fala em inconstitucionalidade e alega fiscalização indevida do Legislativo sobre o trabalho do Executivo, ignorando que o estado do Rio de Janeiro possui um mecanismo de combate à tortura nesses mesmos moldes. Não é preciso ser jurista para saber que, aqui, o argumento jurídico é apenas cortina de fumaça para uma escolha política: blindar o sistema prisional.
Não há contradição no texto do veto. O governo não parece ter qualquer compromisso com o combate à tortura e os maus-tratos, mas precisa fazer soar como se tivesse.
A decisão também mostra que a administração está disposta a acobertar violações que acontecem longe do escrutínio público —e que, em breve, a depender do ímpeto privatizante do próprio governador, estarão ainda mais ocultas sob o manto dos interesses corporativos. Fosse o contrário, Doria teria apresentado saídas para o suposto impasse institucional.
Só a apresentação de uma proposta sem os vícios que atribui ao texto aprovado pela Assembleia Legislativa poderá redimir o governador João Doria. A Assembleia, por sua vez, pode e deve exercer seu direito de rejeitar o veto. Passados mais de 30 anos desde o fim da ditadura, ainda fomos incapazes de mostrar que, para o Estado brasileiro, a tortura é inaceitável. A retórica jamais será capaz de fazê-lo. Precisaremos de materialidade, políticas públicas e compromisso para além das palavras.
José Carlos Dias
Ex-ministro da Justiça (1999-2000, gestão FHC), ex-secretário da Justiça de São Paulo (1983-1986, gestão Franco Motoro), ex-membro da Comissão Nacional da Verdade e conselheiro do IDDD
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