O Rosa encarnado
A leitura de 'Grande Sertão: Veredas' como uma viagem mediúnica
Em 1966, durante um congresso do PEN Club em Nova York, Guimarães Rosa teve uma longa conversa ao pé do ouvido com o poeta Haroldo de Campos. Concreto até a medula, Haroldo se espantou com a dissertação sobre o diabo e seus inúmeros sinônimos (o Cramulhão, o Galhardo, o Coisa-Ruim, o Tisnado, o Coxo, o Pé de Pato, o Sem Gracejos, o Marrafo) e com a possível encarnação de Rosa: “Quando me vem a ideia de escrever, fico louco, rolo no chão, luto com o demo e, sob aquele impacto, eu escrevo”.
Possuído ou não, Guimarães Rosa tinha método. Num caderninho, anotava histórias, significados, curiosidades. Pesquisava a matéria de ficção e consultava pessoas de confiança —a principal delas, o vaqueiro Manuel Nardy, imortalizado como Manuelzão. Antes de escrever, passava pelo processo de “limpar o aparelho”, rabiscar, desenhar, pôr no papel palavras sem sentido até que o santo baixasse.
A Otto Lara Resende, Rosa contou que “Grande Sertão: Veredas” —sua obra-prima publicada em 1956, que está voltando às livrarias em nova edição— era para ser um conto ou no máximo uma novela, que integraria o ciclo de “Corpo de Baile”, lançado naquele mesmo ano. Ele tinha a narrativa curta toda esquematizada na cabeça, mas, na hora de escrever, ela foi crescendo e não quis parar mais. Uma espécie de delírio que durou dias seguidos, até a conclusão do livro.
Com sua invenção linguística e sintaxe original, o romance é tido como difícil, embora apresente um enredo de faroeste hollywoodiano. Costuma ser desprezado com argumentos preguiçosos, de quem se orgulha ao dizer: “Não li e não entendi”. No entanto, como notou o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, ali está um mundo “realmente mágico”. Um mundo próprio no qual nós, leitores, somos convidados a entrar.
Experimente fazer como o autor. Adote uma concepção mediúnica de leitura. A viagem é garantida.
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".
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