O erro de Macri foi não ter negociado com a sociedade o ajuste fiscal
A Argentina saiu da paridade do câmbio em janeiro 2002 no governo de Eduardo Duhalde. Crise econômica profunda: expansão do desemprego para 21,5%, inflação ao consumidor de 41% retração econômica entre 99 a 2002 de 19,5%.
O governo Néstor Kirchner, que assumiu em 2003 beneficiou-se de três fatos, além de receber a casa arrumada pela administração Duhalde/Lavagna.
Raúl Alfonsín (1927-2009), à esquerda, foi o primeiro presidente eleito após o fim do regime militar na Argentina. Assumiu em 1983 e herdou dos anos de ditadura uma dívida externa alta e políticas econômicas malsucedidas. Carlos Menem (1930-), à direita, assumiu em seguida, em meio a hiperinflação e recessão AFP/France Presse- AFP
Primeiro, havia elevadíssima ociosidade. O espaço para o crescimento era amplo – de fato, entre 2003 e 2008 a expansão anual média foi de 8,4%. Segundo, o governo Menem (1989 até 1999), na gestão do ministro da Economia Domingos Cavallo, promoveu, além da paridade fixa da moeda, uma série de reformas liberalizantes em diversos mercados. As reformas não geraram impactos relevantes sobre a produtividade pois o regime cambial, inapropriado principalmente em um momento de choque negativo de termos de troca, como ocorrera entre 1997-2000, impediu o pleno funcionamento da economia. Terceiro, o cenário mundial se inverteu, a China bombou e as perdas de termos de troca se transformaram em um longo período de ganhos.
Esses três fatores produziram um longo período de crescimento da economia argentina com inflação relativamente baixa para os padrões do país (média anual de 7,9%a.a. entre 2003 e 2008) e, muito em função do ajuste e das reformas de Cavallo, confortável situação fiscal.
Inicialmente a política monetária foi frouxa. Juros muito baixos. O que gerou aceleração da inflação mesmo com a política fiscal em ordem. Com o tempo, em que pese o enorme crescimento da receita de impostos, a situação fiscal se deteriorou. Foi se construindo um déficit primário e, ao mesmo tempo, a aceleração inflacionária ganhou corpo.
O país não tinha acesso aos mercados internacionais de capital em função do calote que dera na dívida externa em meio à crise. Não pode se endividar externamente.
A deterioração econômica produziu, ao longo do período da presidência de Cristina Kirchner, redução do crescimento com aceleração da inflação. Cristina legou para Macri economia com baixo crescimento, inflação em 25% ao ano e déficit primário na ordem de 5,5% do PIB.
Macri teria muita dificuldade. Ajuste fiscal de 5,5 pontos percentuais do PIB significa refazer o pacto social. Macri não avisou a população. Teria que liderar essa repactuação.
Tomou outro caminho. O otimismo com o país gerou novo espaço para o endividamento externo. A crença em ganhos de produtividade – com a melhora da política econômica e a elevação do investimento público – levaram o governo a traçar um cenário de forte aceleração do crescimento. O ajuste fiscal viria principalmente desse crescimento. Os economistas ortodoxos de Macri com a cabeça de nossos heterodoxos.
O cenário só ficava de pé com a bonança internacional. O crescimento não veio da forma esperada, o ajuste fiscal foi lento, a dívida externa cresceu, a dívida interna também (especialmente a denominada em moeda estrangeira), o déficit em conta corrente explodiu e a inflação ficou teimosamente acima de 25%a.a.
A necessidade de dólares para fechar as contas e menor disponibilidade do mundo em ofertá-los jogou a economia nos braços do FMI. Agora partindo de um ponto muito pior (inflação potencialmente em 40% e retração da economia de pelo menos 3,0% em 2018) e com promessas draconianas –ajuste fiscal de 2,7 pontos percentuais do PIB já em 2019, ano de eleições presidenciais.
O erro de Macri foi não ter negociado com a sociedade o ajuste fiscal.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
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