São 20h de uma terça-feira friorenta em São Paulo. Um grupo de 24 adultos se prepara para viver uma experiência que vai lhes transportar pelas duas horas seguintes para uma sala de aula de uma escola de ensino médio em Barcelona.
Eles acabaram de assistir ao segundo episódio da terceira temporada de “Merlí”, série catalã disponível na Netflix, que virou febre com um personagem nada pop: um professor de filosofia.
Só que o mestre da ficção, Merlí Bergeron, é também carismático, provocador e contraditório. Consegue ser pop falando de Aristóteles, Sócrates, Adam Smith, Hannah Arendt a partir de questões cotidianas. Temas que inquietam seus alunos adolescentes e também audiências de todas as idades em diferentes latitudes.
Ao incorporar um Merlí dos trópicos, o filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff, também provoca seus alunos brasileiros com tópicos da atualidade.
A exemplo do personagem ficcional, o professor titular de Ética e Filosofia Política na USP coloca em discussão o polêmico vídeo no qual torcedores brasileiros cercam uma jovem na Rússia e gritam frase em alusão à cor do órgão sexual feminino.
“É o tipo de atitude que tem a ver com a postura de pais que criam filhos para serem prepotentes, terem sucesso e se sentirem melhores do que os outros”, critica o filósofo. "É a formação para a desigualdade e o desrespeito no Brasil."
A fala caberia bem na boca do colega catalão. “Este é um curso criativo e instigante, graças à audácia de Janine Ribeiro, ao sugerir tratar do encontro entre filosofia, educação e temas contemporâneos”, afirma Mário Vitor Santos, diretor da Casa do Saber.
O curso está dividido em três módulos e atraiu arquitetos, engenheiros, relações públicas, farmacêuticos, professores na faixa de 35 a 60 anos.
“É um presente ter um professor como Merlí, que dá acesso a uma área de conhecimento que não é simples, como a filosofia, e ainda relacionando com a vida”, reconhece Janine, aos dar as boas-vindas aos inscritos.
FILÓSOFO NO FACEBOOK
Um bom exemplo de como Merlí traduz conceitos filosóficos para o mundo contemporâneo está no episódio em que ele indaga à turma se Aristóteles estaria no Facebook. “Sim, para ele o homem é um animal social”, responde um estudante na aula dedicada ao filósofo grego.
Janine também presenteia a audiência com um banquete filosófico ao destrinchar os três capítulos escolhidos para sua série ao vivo.
O primeiro aborda Adam Smith (1723-1790) e as contradições do mercado e do capitalismo. “É o que melhor mostra a insuficiência da escola”, justifica.
Já o segundo é dedicado a Albert Camus (1913-1960) para tratar de suicídio. “É o mais tocante de todos e coloca Merlí, um ateu, em face do desconhecido.”
O terceiro e último tem como tema o perdão, ancorado na filósofa Hannah Arendt (1906-1975) e na tese da banalidade do mal.
Logo na introdução do curso, Janine traduz algumas simbologias da série, como a presença do besouro, “um animal que perturba e está ali para nos tirar da zona do conforto”.
Já a coruja, símbolo da filosofia, sobrevoa a cidade, no caso Barcelona. “A filosofia é urbana. Está ligada à democracia, à ideia de que o citadino vira cidadão.”
Um bom gancho para falar de um Brasil em que a crítica é vista como inveja, numa sociedade onde não há lugar para discussão, de acordo com Janine.
O filósofo aponta como uma das maiores qualidades de “Merlí” é trazer conflitos em todos os episódios e sempre resolvê-los.
“Neste sentido, a série é hegeliana”, avalia, em referência ao alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1830), o pai da dialética.
“É do conflito dialético que se produz a síntese, que pega o melhor da tese e o melhor do seu oposto, a antítese”, explica.
Para o ex-ministro, a tragédia do Brasil atual é estarmos vivendo a impossibilidade da síntese. “Não há espaço para a conciliação em um país polarizado.”
É quando os dois lados estão firmes em suas convicções, parados. “Ambos estão corretos: um é contra a corrupção e o outro é a favor da inclusão social. No entanto, não se conseguiu juntar as duas pautas corretíssimas numa só.”
Para Janine, o combate à corrupção acaba servindo de pretexto para acabar com a inclusão social, enquanto o combate à exclusão social nem sempre valida o combate à corrupção.
“O trauma, a doença, a guerra é fruto de uma síntese que não ocorreu. A frustração paralisa. Dialética é movimento. Ela cura, é pacificadora.”
É o que ocorre, diz Janine, ao longo das três temporadas da série. O professor brasileiro faz a plateia rir ao sintetizar “Merlí” como um produto de autoajuda: “Como 40 filósofos, um para cada episódio, podem contribuir para sua vida. Cada capítulo é movimento, superação. É o crescimento de todos.”
PARA O MUNDO
Neste processo, o papel da escola e do professor são fundamentais. “Educar é abrir para o mundo”, define Janine. “Qual é a finalidade da educação? É tirar o aluno do mundo fechado da família, da religião, do bairro. Para isso, a escola é um meio, nem sempre suficiente e satisfatório.”
Em um dos episódios, Merlí põe o dedo na ferida: “Que adulto aguentaria ficar seis horas sentado dentro de uma sala de aula?” Janine bate na mesma tecla: “Por que uma criança aos sete anos chega da escola feliz querendo mostrar o que aprendeu e depois, quando cresce, estudar fica chato?”
O ensino médio está na berlinda justamente pelo excesso de conteúdo desconectado do cotidiano e dos anseios dos alunos. “A escola falhou, avaliando o tempo todo e ensinando o que os alunos não querem aprender nem vão utilizar no futuro”, afirma o ex-ministro da Educação.
Ele acaba de lançar “A Pátria Educadora em Colapso” (ed. Três Estelas, 351 págs.). Na obra, aprofunda ideias que não teve tempo de colocar em prática no breve período de seis meses em que esteve à frente do MEC.
Sugere, por exemplo, um modelo mais palatável para o ensino de filosofia. “Três anos da história da filosofia é uma chatice. Podemos ter um ano de estudo de ética, um ano de filosofia política e outro de lógica, para ensinar a pensar e ancorar todo esse conhecimento na vida.”
Janine criou uma comunidade no Facebook chamada “Merlí e a Filosofia no Ensino Médio”, que já tem 5.780 seguidores.
Um espaço para troca de experiências e opiniões. Nela, o ex-ministro já defendeu que o ensino médio proporcione ao jovem uma formação para entrar na vida adulta, quanto profissional e humanística.
O conflito entre as ciências humanas, como filosofia, sociologia e antropologia, e as ciências da natureza e a matemática também aparece na ficção. Merli e a jovem professora de história, Silvana, competem com estilos diferentes em popularidade entre os adolescentes.
“O antagonismo dos dois é evidente. A jovem apresenta um catálogo de cursos, de futuras carreiras, preparando os alunos para o mercado, enquanto Merlí está formando pessoas”, resume Janine.
Ele puxa a sardinha para o ensino de humanas, “útil para todos e não apenas para preparar o aluno para o mercado de trabalho”.
É uma lógica de dar valor às pessoas e não preço às coisas, como pontua Merlí ao falar de Adam Smith, considerado o mais importante teórico do liberalismo.
Ao analisar o capítulo, o brasileiro também critica o caráter predatório do capitalismo. “Em nome da concorrência, a ganância está matando o planeta e vai nos matar a todos se o mercado não for regulado pelos movimentos sociais, trabalhistas e ambientais.”
Em um momento de síntese, Janine faz ainda críticas à esquerda. “Comunistas são ótimos democratas quando estão na oposição. Quando estão no governo não são.”
SISTEMA DATADO
O filósofo da USP também aplaude o seu colega da ficção diante da solução engenhosa que Merlí propõe para o irmão de um dos seus peripatéticos, como carinhosamente chama a turma que protagoniza a série.
O garoto Pau Vilaseca mente compulsivamente e está prestes a ser punido pela direção da escola. “Merlí sugere que ele escreva um livro de ficção”, elogia Janine. “O papel do professor é identificar a vocação, em vez de reprimi-la.”
Diante de um aluno que não se adapta ao sistema educacional ou tem problemas em sala de aula, a tendência é culpar o estudante ou buscar diagnósticos médicos, como o Distúrbio de Déficit de Atenção.
“O sistema está datado. E a indústria farmacêutica não é a resposta”, afirma Merlí, quando indagado se o garoto hiperativo deve ser encaminhado a um terapeuta.
São tiradas que motivam os peripatéticos e o público a pensar. E também a questionar.
Na segunda parte da primeira aula, quando Janine abre espaço para perguntas, um pai relata que assistiu vários capítulos da série com a filha adolescente e lança uma provocação de volta ao filósofo de plantão. “Por que os professores de filosofia são todos comunistas? Por que a escola hoje está contaminada?”
Janine exercita o diálogo e sem se incomodar com a crítica implícita coloca seu ponto de vista. “É evidente que o professor não pode fazer a cabeça do alunos, mas ao mesmo tempo ele tem de expor várias posições.”
Para o ex-ministro, existe hoje no Brasil um movimento contra a educação. “Um deles é a Escola Sem Partido que, por exemplo, tentou proibir que o professor apresentasse qualquer conteúdo que fosse conflitante com a religião dos pais dos alunos.”
Segundo Janine, Merlí é um filósofo que se coloca fortemente a favor das liberdades individuais. Postura que resultou em conflitos com pais, colegas e a direção da escola em vários momentos da série.
Numa provocação à la Merli, Janine desferiu um petardo para a plateia, em sua maioria, composta de pais e um outro professor de filosofia como ele.
“Há três posições na sociedade que começam com a letra P e que só são um sucesso quando se tornam desnecessárias: a de pai, a de professor e a de psicanalista.”
De acordo com o filósofo, cabe ao pai tornar o seu filho autônomo, ao psicanalista dar alta ao paciente e ao professor formar o aluno para a vida. Quesito no qual o mestre catalão da telinha é um sucesso. “Merlí é fascinante justamente porque ensina para a vida.” Um professor com P maiúsculo.
Eliane Trindade
Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.
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