Lançamento da moeda durante a campanha definiu o jogo a favor de FHC, mas Plano Real poderia ter sido inviabilizado pelas ameaças de Lula
Fernando Canzian
SÃO PAULO
Este é o sexto texto da série "Minha Eleição", que todo sábado trará relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.
Nenhuma eleição pós redemocratização foi tão definidora para o Brasil como a de 1994.
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Além de contrapor pela primeira das seis vezes o PSDB e o PT, ela assentou, com o lançamento do Plano Real, as bases para a estabilização da economia que dura até hoje.
Foi ali que nos livramos do risco da hiperinflação e do aumento da desigualdade que o descontrole de preços provoca. Foi também quando o país rachou entre dois projetos, um mais liberal e outro de contornos estatizantes.
Ainda confuso entre essas duas visões, o Brasil tem à frente outro impasse: o risco de insolvência por causa de gastos insustentáveis com Previdência e funcionalismo.
Hoje, no entanto, só depende do país desarmar o problema, reformando a Previdência para que se compre tempo —e espaço no Orçamento— para realizar outras atualizações estruturais.
Em março de 1994, quatro meses antes do lançamento do Plano Real, não tivemos esse luxo: a nova moeda e o futuro dependiam de um grupo de banqueiros a milhares de quilômetros de Brasília, em Nova York, que renegociavam o equivalente a um quarto da dívida externa brasileira.
Mais precisamente, US$ 35 bilhões, dos quais eram credores dezenas de bancos internacionais liderados pelo então chairman do Citibank, William Rhodes.
À época, nem o Fundo Monetário Internacional confiava mais no Brasil por causa de calotes dados em credores nos 11 anos anteriores.
Sem o aval do FMI e com reservas em dólar exíguas, o país teve de se virar sozinho no mercado para adquirir —a um custo maior do que teria com o apoio do Fundo— US$ 2,8 bilhões em títulos do Tesouro dos EUA para dar aos bancos como garantia na negociação.
Como o Plano Real dependeria da chamada "âncora cambial", que manteve o valor da nova moeda próximo a US$ 1 a fim de conter a inflação, era imperativo ao Brasil estar em paz com seus credores para garantir acesso e fluxo de financiamentos em dólares e a confiança dos investidores.
Aos 27 anos, fui enviado a Nova York pela Folha para uma temporada como correspondente que começaria antecipada por conta dessas negociações; e pela ida à cidade do então pré-candidato à presidente da República Fernando Henrique Cardoso, à época ministro da Fazenda do governo Itamar Franco (1992-1994).
No dia 18 de março de 1994, um orgulhoso FHC anunciaria no saguão de seu hotel em Manhattan que o chamado Comitê Assessor dos Bancos Credores, liderado por Rhodes, assinaria o acordo para a dívida em 15 de abril.
Com o Plano Real em preparação desde fevereiro, FHC capitalizou o fato afirmando que "o fim" do problema da dívida tornaria "mais forte qualquer candidatura com um programa econômico do tipo que nós propusemos".
Semanas depois, na assinatura do acordo, Rhodes citaria a Bíblia para justificar "a boa vontade" dos bancos: "A Bíblia nos diz que há um momento para viver e outro para morrer, e nós achamos que chegou o momento de acertar as coisas com o Brasil".
Tudo perfeito, não fosse um detalhe: 15 dias depois do acordo, Lula aparecia como favorito na corrida presidencial.
Com 42% das intenções de voto no Datafolha, ante 16% de Fernando Henrique, o petista era um candidato radical.
Não só se posicionava contra as bases do que seria o Plano Real como, no início de maio de 1994, passou a dizer que, se eleito, reveria o acordo que acabava de ser assinado com os bancos.
Nesse contexto, Lula decidiu ir a Nova York.
A viagem visava explicar a empresários e banqueiros sua visão de Brasil e projeto de governo, favorável à reserva de mercado em áreas como petróleo e telecomunicações.
Mas tudo isso passava, em primeiro lugar, por "rediscutir o que foi acertado sobre a dívida, nesse acordo feito às pressas", dizia Lula.
Enquanto o petista preparava a viagem, maio registraria fuga abrupta de investidores internacionais da Bolsa de Valores de São Paulo, onde o movimento financeiro depois esvaziaria à metade em relação aos primeiros meses do ano.
O fato não abalou Lula, e ele chegou a Nova York em 8 de maio dizendo que a especulação no mercado "não é boa nem com o capital estrangeiro nem com o brasileiro".
Recebido por cerca de 60 pessoas no saguão do aeroporto, entre elas índios com cocares, Lula passou rápido pelo Hotel Delmonico, na Park Avenue, e foi almoçar com outras 20 pessoas na centenária Peter Luger Steak House, no Brooklin.
Apesar da conta de US$ 1.400, paga pela embaixada brasileira, Lula disse à saída que seu filé "não estava tão bom como o do 'Bar das Putas' em São Paulo" --referência antiga a frequentadoras de outra época do Bisteca D´Ouro, na avenida da Consolação.
No dia seguinte, o petista participaria de encontro com cerca de 650 empresários, investidores e curiosos em um hotel em Nova York para expor suas ideias sobre o Brasil.
Enquanto era questionado sobre se planejava fechar a Bolsa, Lula desconversava dizendo que sua preocupação era com os 8 milhões de desempregados no país.
"Eles precisam de trabalho e de investimentos produtivos no lugar de especulativos."
Na sequência, atrasado para uma visita ao The New York Times e preso no trânsito, Lula e sua comitiva caminharam como doidos pelas ruas de Manhattan para chegar à sede do jornal. À noite, ele ainda iria a Boston para falar a alunos da Universidade de Harvard.
Diante de quase mil pessoas em uma sala abarrotada, Lula deu trabalho ao tradutor.
Sentia-se como um "lambari num tanque de tubarões" ("a little fish in a shark´s tank") ao falar na prestigiosa escola a respeito de suas andanças pelo Brasil e sobre como gostaria de ver os brasileiros bem mais ricos.
"Só quando deixei de ganhar US$ 600 como metalúrgico e passei a ganhar US$ 5.000 como deputado é que percebi como o dinheiro é importante para a democracia. Os pobres precisam entender isso para exigir mais."
Mas o ponto alto —e tenso— da visita aos Estados Unidos se daria na volta do petista a Nova York e antes de um outro encontro com empresários e banqueiros em um hotel de Manhattan.
Mal entrou, Lula foi detectado a partir do outro lado da sala pelo responsável pela recente renegociação da dívida externa que o petista agora ameaçava implodir.
Sem cerimônia, William Rhodes atravessou rapidamente o salão e foi para cima de Lula. Direto, o executivo do Citibank encostou as costas da mão direita no peito do petista e disparou, em espanhol: "O senhor vai honrar o acordo?". Desconcertado, o petista respondeu: "Cabe ao presidente honrá-lo".
FHC faria isso depois de virar o jogo da eleição com o Plano Real e acabar eleito no primeiro turno em 1994, com 54,3% dos votos válidos —o petista terminou com 27,1%.
Oito anos depois, em 2002, Lula pagaria caro por suas posições, com o dólar a R$ 4 (cerca de R$ 6,30 hoje) e uma enorme confusão financeira às vésperas de sua vitória sobre o tucano José Serra.
A fim de vencer e acalmar os mercados, Lula não só divulgou a Carta ao Povo Brasileiro como, eleito, cumpriu à risca acordo firmado em agosto de 2002 entre Brasil e FMI —então arqui-inimigo dos petistas— para um empréstimo de US$ 30 bilhões que financiaria nosso passivo externo.
Na essência, o Fundo demandava do Brasil o trivial: contas superavitárias, inflação na meta e o câmbio flutuante, o chamado "tripé macroeconômico".
Foram necessárias mudanças para ajustar as contas, como a reforma da Previdência de 2003, que dificultou a saída do setor público com vencimentos inalterados e acabou com as aposentadorias integrais para novos servidores.
Mas foi isso, e a manutenção do tripé gestado no FMI o que, ironicamente, ajudou o governo Lula a terminar, em 2010, extremamente popular e com o PIB em alta de 7,5%, a maior taxa em 24 anos.
O país também pagaria toda a sua dívida externa e acumularia reservas que hoje superam os US$ 380 bilhões.
A ELEIÇÃO DE 1994
Data
3 de outubro de 1994
3 de outubro de 1994
Candidatos a presidente
Fernando Henrique Cardoso (PSDB): 54,3%
Lula (PT): 27,1%
Enéas Carneiro (PRONA): 7,4%
Leonel Brizola (PDT): 3,2%
Orestes Quércia (PMDB): 4,4%
Fernando Henrique Cardoso (PSDB): 54,3%
Lula (PT): 27,1%
Enéas Carneiro (PRONA): 7,4%
Leonel Brizola (PDT): 3,2%
Orestes Quércia (PMDB): 4,4%
Slogan do vencedor
"Tá na mão, Brasil"
"Tá na mão, Brasil"
População à época
153,72 milhões
153,72 milhões
Crescimento do PIB
5,9%
5,9%
Inflação do ano
916%
916%
Urbanização
78,16%
78,16%
Expectativa de vida
68,11 anos
68,11 anos
Músicas
"Malandragem" (Cássia Eller)
"Assim Caminha a Humanidade" (Lulu Santos)
"Malandragem" (Cássia Eller)
"Assim Caminha a Humanidade" (Lulu Santos)
Escola vencedora do Carnaval do Rio
Imperatriz, com o enredo "Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e dos Tabajéres"
Imperatriz, com o enredo "Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e dos Tabajéres"
Novelas no ar
"A Viagem", às 19h
"Pátria Minha", às 20h
"A Viagem", às 19h
"Pátria Minha", às 20h
No cinema
"Forrest Gump", sucesso protagonizado por Tom Hanks, estreou nas salas de São Paulo no dia da eleição
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Erramos: o texto foi alterado
O nome do hotel Delmonico foi incorretamente grafado como Delmonicos
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