domingo, 2 de novembro de 2025

O carro autônomo e o operador embaixo da mesa, Alvaro Machado Dias- FSP

 Wolfgang von Kempelen enganou americanos e europeus do século 18 com sua inteligência artificial enxadrista, que vinha com um operador sob o tampo da mesa. Algo não tão diferente ocorre com os robotáxis de San Francisco e Wuhan, que deslumbram a internet enquanto são monitorados por equipes remotas, prontas para assumir o controle.

Mas, como em tantas outras áreas, são os níveis intermediários de automação que estão provocando a verdadeira transformação no transporte e nas instituições que o sustentam. Cerca de 90% dos acidentes veiculares decorrem de erro humano e as evidências mostram uma relação direta entre o avanço da assistência à direção e a queda nas colisões.

Veículo branco autônomo com sensores no teto trafega em cruzamento de rua urbana. Sinal de trânsito está verde e há prédios comerciais ao fundo.
Veículo autônomo em Santa Mônica, Califórnia - Daniel Cole - 30.mai.25/Reuters

Funções já comuns em carros de autonomia nível 2, como alerta de risco de colisão frontal e frenagem automática, reduzem acidentes em quase 30%. Quando combinadas com manutenção automática de faixa e alertas de mudança, as colisões fatais caem em proporção semelhante.

O ano que vem será um divisor de águas no enfrentamento desse problema que lidera as mortes entre pessoas de 5 e 29 anos no mundo, 92% delas em países de renda baixa ou média. Montadoras chinesas, coreanas e europeias vão lançar diversos carros de nível 3, na expectativa de criar um novo padrão global de mobilidade.

Hoje, apenas veículos de luxo oferecem esse grau de inteligência de máquina, que inclui condução supervisionada em condições específicas, como estradas bem sinalizadas, dando origem a híbridos entre veículos tradicionais e verdadeiros robôs de rodas, para onde o mercado avança aos trancos e barrancos.

No centro dessa transformação está o LiDAR, que cria modelos tridimensionais do entorno com pulsos de luz usados pela IA para identificar veículos, pessoas e placas. O desafio é assegurar sua adoção em larga escala no Brasil.

O obstáculo mais imediato é tributário: o corte de impostos que impulsionou a venda de elétricos nos últimos anos vai desaparecer até julho de 2026. A medida busca estimular a produção local, o que faz sentido, mas deveria preservar a isenção para modelos médios e econômicos com autonomia avançada, enquanto a fabricação nacional desses veículos não se viabilizar. Isso ajudaria a reverter o ceticismo das montadoras, que têm retirado o LiDAR de carros que o trazem como item de série durante seu processo de "tropicalização", como no caso do recém-lançado Zeekr 7x.

O segundo obstáculo é jurídico. O Código de Trânsito Brasileiro, de 1997, impõe vedações involuntárias à condução automatizada. Atenta à necessidade de atualização, a Câmara dos Deputados trabalha no PL 1.317/2023. Segure o patriotismo, pois embaixo da mesa há um Von Kempelen. A despeito de o tema ser justamente a redução da interferência humana na direção, o substituto de julho de 2025 diz que "o condutor deve ter treinamento específico para operação desses veículos".

Analisei as leis de trânsito já adaptadas a veículos autônomos e não encontrei um único exemplo de curso obrigatório. O caso é grave. Ao contrário do golpe das aulas obrigatórias para tirar a carteira de motorista, que são excludentes e, por consequência, reduzem as mortes no trânsito, o que se prepara agora é um modo de perpetuá-las. Em vez de libertar o volante pelo bem das pessoas, a lei brasileira parece determinada a segurá-lo até o último centavo.


sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Adeus à MPB, adeus Carlos Sandroni, Gustavo Alonso, FSP

 

Encontrei-o pela última vez nas eleições do ano passado. Votamos na mesma zona eleitoral, no bairro do Poço da Panela, em Recife. Doce como sempre, Carlos Sandroni puxou conversa sobre amenidades e pepinos cotidianos da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), onde trabalhamos.

Sua delicadeza e ponderação impedia que tivesse inimizades na pós-graduação em música, da qual foi um dos fundadores. Eu era um dos seus vários colegas. Apesar de bem mais jovem, sempre fui tratado como um igual por ele, que era um dos mais importantes pesquisadores da música brasileira.

Homem de meia-idade com cabelo grisalho curto, usando camiseta preta, posando em frente a uma cortina branca translúcida com luz natural suave.
O músico, compositor, professor e pesquisador Carlos Sandroni - Divulgação/Facebook

Formado em Sociologia em 1981 pela PUC-RJ, Sandroni era violonista e compositor. Nos anos 1980, dividido entre a academia e a carreira artística, acompanhou artistas de renome da época, como sua irmã Clara Sandroni e a cantora Teca Calazans. Canções suas foram cantadas por Olivia Byington, Leny Andrade, Leila Pinheiro e Milton Nascimento. Não deixe de ouvir sua impagável "Pão Doce", regravada por Adriana Calcanhotto em 1990.

Sua dissertação de mestrado, "Mário Contra Macunaíma: Cultura e Política em Mário de Andrade", originalmente defendida em 1987, foi relançada em bonita edição ano passado. Neste livro foram seladas as diretrizes do Sandroni pesquisador de música popular.

Questionando a idéia de que Mário de Andrade seria mero conservador estético, um romântico apegado às raízes rurais brasileiras, Sandroni defendeu que havia em sua obra um projeto modernizador. Diferente dos vanguardismos do século 20, o Mário lido por Sandroni via a tradição rural nacional como um trampolim para a construção da moderna identidade brasileira. Tradição e modernidade não seriam antípodas, mas conciliáveis propulsores da cultura nacional andradiana.

Em 1997 Sandroni defendeu seu doutorado, que se tornou o clássico livro "Feitiço Decente: Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933)". Numa época em que não havia internet, o pesquisador se esmerou em mergulhar nos arquivos, explorando as diferenças entre o que era chamado de samba no início do século e o samba que foi posteriormente abraçado pelo rádio e pela indústria do disco. Descreveu e analisou musicologicamente este padrão fonográfico que batizou de "paradigma do Estácio". Era uma referência ao bairro carioca cujo padrão musical se hegemonizou após décadas de batalhas estéticas entre músicos cariocas, tornando-se sinônimo de samba nacional.

Homem de cabelos grisalhos veste camiseta azul e toca violão clássico sentado em sofá de vime com almofada estampada. Fundo é parede clara sem decoração.
O músico, compositor, professor e pesquisador Carlos Sandroni - Reprodução/Carlos Sandroni no Youtube

Essas questões e o fato de ter se tornado professor da UFPE em 1998 o levaram a sedimentar a etnomusicologia no Brasil, ramo do estudo que investiga como diferentes comunidades produzem música, a vivenciam e a atribuem significados em seus contextos sociais. Foi fundador da Abet (Associação Brasileira de Etnomusicologia) em 2001, da qual foi o primeiro presidente.

Sandroni tinha olhos atentos à polissemia da cultura. Intelectual de poucos livros (apenas dois) e vários importantes capítulos de livros e artigos de revistas acadêmicas, nunca parou de tocar e cantar. Essa era uma das marcas de Sandroni: o pioneirismo acadêmico e a busca de um meio de campo vital entre academia e a cultura popular, entre a prática e a teoria.

Escrevia artigos de forma clara e direta, sem excessos teóricos frívolos, sempre com um ponto de vista que mantinha uma saudável curiosidade investigativa. Ele buscava entender as relações entre "alta" e "baixa" cultura, que muitas vezes se expressam em processos de patrimonialização das formas artísticas populares, seja através do abraço do Estado, ou através da incorporação via indústria da música. Com vistas a entender in loco o processo que estudava, criou a Associação Respeita Januário que, em parceria com o IPHAN, foi a co-responsável pela patrimonialização do samba de roda baiano e do forró nordestino.

Em seus artigos sobre o tema da patrimonialização, Sandroni atacava dois pontos de vista que limitavam o entendimento do assunto. O primeiro ele chamava de "demasiado ingênuo", aquele que supõe que o patrimônio popular já existe, plenamente criado por grupos locais, antes da chegada de quaisquer agentes de políticas públicas, pesquisadores ou mercado. O segundo ponto de vista, também criticado, ele batizou de "demasiado sagaz". É aquele olhar que via o patrimônio imaterial como algo imposto, uma armadilha da governamentalidade ou de empresários maldosos a comunidades puras e autóctones. Sempre otimista, Sandroni fugia da romantização da cultura popular e não diabolizava aqueles que buscavam dialogar com ela, fosse o Estado, pesquisadores ou o mercado.

Sandroni abordava seus objetos sempre com fartura de dados de pesquisa, na busca por compreender as relações complexas entre agentes oriundos de diferentes instâncias. Em artigo sobre o manguebeat, por exemplo, explicou como universitários e grupos de maracatu se encontraram e gravaram em grandes gravadoras, tendo repercussão nacional. Em obra sobre a patrimonialização do samba de roda baiano, mostrou os dilemas e as diferentes posturas de comunidades de sambistas do Recôncavo baiano diante dos pesquisadores do IPHAN.

Um dos seus mais instigantes artigos chama-se "Adeus a MPB", escrito em 2004 para o livro "Decantando a República", obra organizada pelos intelectuais Heloísa Starling, Berenice Cavalcanti e José Iasenberg. Nele, Sandroni mostrou como o termo "música popular" teve vários sentidos na nossa história. Na época de Mário de Andrade tinha um sentido associado ao folclore. Na época da ditadura militar o termo foi relido pela MPB, associando-se à ideia de povo e da resistência. No novo milênio, quando Sandroni escrevia, o sentido de música popular construído pela MPB parecia dar sinais de esgotamento, diante da ascensão de sertanejos, pagodeiros, funkeiros e cantores de axé desde a década anterior.

Sandroni começou sua carreira influenciado esteticamente pelos ídolos da MPB. Mas sabia separar sua faceta pública de músico e agente patrimonializador do pesquisador acadêmico. Dotado de pensamento original e autônomo, não era romântico, não tinha saudade tola de um passado ou de uma pureza popular que não existe por si. O que está em jogo no seu pensamento crítico é o lugar do povo brasileiro. "Adeus à MPB" é um lamento. Mas é também a gestação de um porvir e "diz respeito não apenas a música, mas também a nossos maltratados ideais republicanos" e a quem queremos ser enquanto nação, enquanto povo. Novos Brasis apontavam na reta. Novas audições seriam necessárias.

Em nossa última conversa, percebi um pequeno aparelho auditivo que ele começara a usar, bastante tecnológico. Sem nenhum sinal de mágoa com o que parecia ser o sinal da idade, conversamos sobre aquela experiência sônica, uma nova forma de viver a música e os sons. Não sabíamos que aquele era talvez um sintoma do tumor fulminante que o matou poucos meses depois, no último dia 28, aos 66 anos.

Adeus, Sandroni. Um grande professor-artista-pesquisador-colega deixa marcas que jamais são esquecidas.


Casal faz 'intercâmbio gospel' para mostrar diferenças entre igrejas evangélicas, Fsp

 Melina Cardoso

São Paulo

"Visitante seja bem-vindo, sua presença é um prazer". Se você é crente raiz, certamente já ouviu esse corinho quando alguém sinalizou estar pela primeira vez na igreja.

Existem muitos estilos à sua escolha: com parede preta, parede clara, com coral, com banda, arquitetura clássica ou mais moderna, igrejas históricas ou pentecostais.

Homem e mulher brancos posam lado a lado em estúdio com fundo preto e painel azul. Homem veste camisa cinza e mulher blusa branca com calça preta.
Pedro e Luiza mostram a pluralidade da igreja em seu canal @alegriaemdosedupla, no Instagram

Apesar de tantas diferenças, todas têm em comum a crença na Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), na divindade de Jesus, confessam que a morte na cruz ocorreu por causa dos nossos pecados e que Cristo ressuscitou ao terceiro dia. Também acreditam que a salvação vem pela graça, mediante a fé e têm a Bíblia como Palavra de Deus (falo mais sobre isso no final deste texto, fique firme aí).

Pensando em viver novas experiências de fé e matar a curiosidade de seus seguidores, o casal Pedro Paulo Gomes, 25, e Luiza Martins, 24, decidiu gravar visitas a diferentes igrejas evangélicas. Apelidaram o quadro de "intercâmbio gospel".

Batista, Quadrangular, Metodista, Presbiteriana e Assembleia de Deus são alguns dos locais visitados. O critério é que o local reflita a essência da fé cristã.

Para viver a experiência de forma mais autêntica possível, eles não avisam as igrejas sobre a visita. "Nosso objetivo é mostrar aos seguidores a experiência que eles teriam ao conhecer aquela comunidade pela primeira vez", explica Luiza. "Para nós, a verdade das visitas é essencial, pois permite registrar a receptividade e o dia a dia da igreja de maneira genuína", observa.

Bacharéis em Direito, eles são convertidos desde 2023 e congregam na Igreja Episcopal Carismática do Brasil, em Recife (PE).

Segundo Pedro, a experiência tem ampliado a compreensão do Reino e possibilitado aprender com as virtudes de diferentes comunidades. "Conhecemos novos irmãos que amam a Deus em diversas tradições e reconhecemos a beleza existente na pluralidade do corpo", diz.

Para Pedro, é essencial que todo cristão esteja firmemente inserido em uma comunidade local, "pois é nela que ele poderá ser exortado, crescer na fé e frutificar", afirma. Contudo, manter o equilíbrio e, eventualmente, conhecer outras igrejas pode ser algo muito benéfico", completa o comunicador digital.

"Participar de um congresso ou evento em outra comunidade, por exemplo, permite enxergar o cristianismo para além dos limites da própria igreja local", afirma Luiza. Segundo ela, a troca também serve como um espelho para identificar aspectos a serem aprimorados em sua comunidade.

"Precisamos nos lembrar de que aquilo que nos une –o amor por Jesus e por Sua Palavra– deve ser maior do que aquilo que nos separa", diz Pedro, referindo-se às formas de adorar, a cor das paredes, usos e costumes ou o estilo de pregação.

Para o casal, o intercâmbio também pode ajudar quem, talvez, tenha se decepcionado com a igreja ou até encorajar aqueles que ainda não tenham descoberto uma comunidade à qual possam pertencer.


Dia da Reforma Protestante

Nesta sexta-feira (31) muitos evangélicos celebram os 508 anos da Reforma Protestante.

Em 1517, o monge Martinho Lutero (1483-1546) fixou 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg (Alemanha), onde questionava, entre tantas coisas, a autoridade papal e o pagamento de indulgências pela Igreja Católica. Ele promoveu a ideia bíblica de que a salvação era alcançada pela fé e para isso, a Bíblia deveria ser lida por todos.

A partir deste movimento surgiram as igrejas protestantes. Lutero propôs cinco princípios teológicos que até hoje são a base das igrejas protestantes:

"Sola Scriptura" (somente a Escritura): somente a Bíblia é a palavra de Deus; "Sola Fide" (somente a Fé): somente pela fé em Jesus somos salvos; "Sola Gratia" (somente a graça): somente pela graça de Deus somos salvos; "Solus Christus" (somente Cristo): apenas Jesus é o caminho que leva o homem de volta a Deus e "Soli Deo Gloria" (somente a Deus a glória): toda glória pertence somente a Deus. Feliz dia da Reforma!