quinta-feira, 10 de abril de 2025

Depoimento: Minhas anotações sobre juiz 'Edward Wickfield', diretamente de 1995, FSP

  

André Fontenelle
André Fontenelle

Jornalista brasileiro baseado em Paris. Formado pela UFRJ e pela Universidade de Aix-Marselha (França), com mestrado na UnB. Além da Folha, trabalhou em O Globo, Lance, Placar, Viagem & Turismo, Veja, Época e SporTV.

Paris

Em 1995, entrevistei uma pessoa que se identificou como Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, para uma curta reportagem na Folha sobre os candidatos recém-aprovados em um concurso da magistratura em São Paulo.

Quando foi noticiado que Wickfield não seria quem diz ser, as pessoas deram um Google em seu inusitado nome completo. Das profundezas da internet, resgataram pouquíssima coisa além desse meu texto, do qual eu mesmo não tinha a menor lembrança. Escrevi a respeito nesta mesma Folha na semana passada, mas submeto o leitor de novo ao assunto por causa de um achado curioso: minhas anotações em um surrado caderno de capa preta de 1995.

Lembrei-me de procurá-lo —sim, sou um acumulador— na esperança de entender melhor o caso. Para minha surpresa, lá estavam quatro páginas com todas as notas para a reportagem que eu já tinha esquecido. Como na Redação da Folha só havia uma cabine com gravador de ligações, era preciso anotar minuciosamente as entrevistas feitas por telefone.

No caderno, rabisquei "Edward (Limeira)", referência à cidade para a qual ele fora aprovado, e um número de telefone à moda antiga, com sete algarismos.

A imagem mostra a fachada do Palácio da Justiça, sede do TJ-SP, um edifício histórico com detalhes arquitetônicos elaborados. O topo da construção apresenta um ornamento central, enquanto as laterais possuem esculturas de figuras humanas. As janelas são retangulares e estão dispostas em várias fileiras, com um estilo clássico e simétrico. O céu ao fundo está levemente nublado.
Fachada do prédio do Palácio da Justiça de São Paulo, sede do Tribunal de Justiça de São Paulo - Eduardo Knapp - 14.out.19/Folhapress

Claramente, a entrevista com ele foi rápida, porque ocupa menos de meia página. Há poucas informações a mais do que aquelas que publiquei então. O suposto Wickfield contou-me ter passado no concurso na segunda tentativa. Que estudava sempre sozinho. Que era filho de ingleses, o pai engenheiro, e a mãe, psiquiatra.

Outra curiosidade do meu caderno foi ver que entrevistei uma das responsáveis pela comissão do concurso, a desembargadora e professora Lucia Valle Figueiredo Collarile. Perguntei a ela sobre o nível dos candidatos. "Decepcionou profundamente", ela respondeu, frase que, relida hoje, ganha um novo sentido.

"Eu supunha que o sujeito que vá concorrer [à magistratura] fosse inspirado por valores mais altos —Justiça, ingressar numa carreira nobre", prosseguiu Collarile (que morreu em 2009). "Que a qualidade intelectual fosse melhor. A prova escrita mostrou deficiência. Não a nível jurídico, mas do próprio enunciado das ideias: erros de grafia, concordância."

Mal sabia ela que havia problema ainda mais grave. Segundo minhas notas, perguntei-lhe sobre o inusitado perfil do concursado Edward, que dizia ter morado na Inglaterra até os 25 anos. "O sistema inglês é muito diferente, basicamente jurisprudencial e consuetudinário, enquanto o do Brasil é codificado", foi tudo que anotei como resposta.

Revendo meus apontamentos, constato que entrevistei outros candidatos, não incluídos no texto final. Nas mesmas páginas estão entremeadas anotações para outras matérias apuradas simultaneamente, inclusive uma sobre a "tensão pré-Natal" de quem vai ao shopping fazer compras de fim de ano, publicada no mesmo dia, felizmente sem assinatura.

Como não havia Google, redes sociais ou currículo Lattes na época, era inegavelmente mais difícil conferir o que nos diziam. Mas mesmo essa checagem, hoje banal, não chega a ser uma vacina infalível contra fraudes; afinal, abundam na internet os perfis falsos. A lição fundamental, para o jornalismo de qualquer época, é a necessidade de manter sempre a guarda alta contra a credulidade.

Os próximos passos do biometano no Combustível do Futuro, Eixos

 

EDIÇÃO APRESENTADA POR

NESTA EDIÇÃO

O governo trabalha em decreto e resoluções para regulamentos a entrada do biometano na matriz de combustíveis.

Oferta e harmonização de certificados são questões que precisam de respostas ainda este ano para viabilizar mandato em janeiro de 2026
 .

Editado por Nayara Machado
nayara.machado@eixos.com.br
Não é assinado? Inscreva-se aqui

Sancionada em outubro de 2024, a lei do Combustível do Futuro inaugura no Brasil um mercado cativo para o biometano, a partir de um mandato de redução de emissões que deve entrar em vigor já em 1º de janeiro de 2026.

O mandato pode ser cumprido tanto com a utilização da molécula quanto com a compra de certificados de rastreabilidade que também estão sendo criados a partir do marco legal, o CGOB (Certificado de Garantia de Origem de Biometano).

Há, no entanto, um longo caminho regulamentar a ser percorrido para colocar esse mandato de pé. E o prazo é curto.

"Temos um mandato a cumprir e a regulamentação para que tudo esteja operando a partir de 2026. É um desafio gigante. A gente não quer ser mais um elemento complicado do mercado de gás natural. O mandato para o biometano não pode ser algo que vá atrapalhar esse mercado e onerar o consumidor", comenta Marlon Arraes , diretor do Departamento de Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME).

Segundo Arraes, a visão da massa é que o biometano deve ser uma solução para o mercado de gás, atraindo novos consumidores para a molécula que carrega o atributo da descarbonização .

Ele participou, na terça (8/4), de uma mesa redonda promovida pela Gas Week com representantes da ANP, Petrobras e Marquise Ambiental sobre a agenda regulatória pós-Combustível do Futuro.

Oferta para atender a demanda obrigatória, cálculo da meta e do atributo ambiental, além da harmonização do CGOB com outros certificados existentes são algumas questões que ainda precisam de uma resposta – antes de 1º de janeiro.

No final de 2024, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) instituiu o Comitê Técnico Permanente do Combustível do Futuro, que terá um subcomitê dedicado ao tema.

Arraes conta que a reunião inaugural deve ocorrer ainda em abril.

Além de um decreto regulamentador, o colegiado deve orientar atos infralegais como resoluções da ANP, para regulamentos o CGOB e a fiscalização do mandato.

PUBLICIDADE

Revisão de resoluções

"O biometano não é uma novidade na vida da ANP. Já temos resoluções como a que regula o exercício da atividade e duas que já trazem uma previsão sobre o biometano", observa Fernando Moura , diretor da ANP.

Ele também citou a autorização especial concedida à GNR Fortaleza em 2024 para injeção de biometano na rede da Cegás como uma experiência que se alinha à discussão sobre os próximos passos para introdução do biocombustível na matriz.

A organização dos trabalhos na ANP é semelhante à do MME: um grupo de trabalho formado em 2024 pela Superintendência de Biocombustíveis e Qualidade de Produtos está analisando se será preciso rever as resoluções existentes, especialmente em termos de concepção. Além disso, claro, de como será feita a certificação do CGOB.

"Já temos descobertas importantes e temos feito também um esforço com o mercado para entender o que cada um tem a contribuir. É importante que a ANP ouça e consiga internalizar, na medida do possível, essas expectativas para que a gente consiga sair com um modelo mais equilibrado possível", afirma.

Cuidado com a dupla contagem

Talvez uma das questões mais sensíveis neste novo mercado, a harmonização do mandato de biometano e a emissão dos CGOBs com o RenovaBio e os créditos de descarbonização (CBIOs) ainda deva render muito debate.

"A gente tem um limite legal que é o da não dupla contagem. Não pode ter nada que dê margem a uma dupla contagem do atributo ambiental", destaca Arraes.

Ele explica que o CGOB é um dos instrumentos para cumprir a lei, e a intenção é permitir transações do título no mercado, de forma transparente e com liquidez. Para isso, procure referências no Renovabio.

Petrobras testa o mercado

Em janeiro deste ano, a Petrobras lançou seu primeiro edital de compra de biometano, o que pode ajudar a responder a uma outra pergunta: vai ter oferta?

A chamada recebeu respostas até 31 de março e a expectativa é chegar ao final do ano com contratos celebrados para cumprir o mandato que será estabelecido pelo CNPE.

"A gente já vem olhando o biometano há bastante tempo com duas frentes. Uma frente seria a descarbonização das nossas operações, com uma entrega eventualmente em alguma das nossas unidades, isso está na nossa chamada de propostas, como uma possibilidade", conta Gabriela Damasceno , gerente de Gestão de Contratos e Orçamentação da Petrobras.

“A outra frente seria o biometano para compor o nosso portfólio de ofertas. A gente opera com as ofertas nacionais, importação por gasoduto, importação de GNL. O biometano entraria para reduzir a pegada de carbono do nosso portfólio e também atender às necessidades dos clientes, mas sempre com uma visão de competitividade”.

Gabriela afirma que a petroleira já vinha estudando o mercado e mapeando possibilidades de prazos, volumes e condições comerciais. Mas a chegada da lei trouxe um novo sentido de urgência.

"Com a lei, efetivamente, com o estabelecimento desse prazo, que concordamos é um prazo curto, solicitamos, entendemos que era preciso dar um passo adicional. O passo adicional foi a chamada de propostas".

Atenção à demanda e ao mercado livre

Para Hugo Nery , presidente da Marquesa Ambiental , que opera a usina de biometano GNR Fortaleza , é preciso também entender a demanda para atrair os investimentos.

"Há toda uma dificuldade no Brasil para que se possa entregar o gás de petróleo a um preço competitivo onde precisa. Seja de caminhão, seja de importação, é um desafio porque toda a nossa estrutura de distribuição, diferente da Europa, não é baseada em gás, é baseada em granéis líquidos".

Com a expansão do mercado de biometano, mais pulverizado que o de gás natural, essa infraestrutura precisará de nova escala, o que significa altos investimentos.

Na visão do executivo, se a decisão do país é pela descarbonização, será preciso encontrar soluções criativas para escalar a distribuição de gás de forma competitiva.

“É importante conhecer a demanda para saber quanto vale o investimento em estrangeiro ou em caminhão para que as pessoas possam fazer uma distribuição adequada”.

Ele aponta que há um grande potencial em aterros sanitários pelo Brasil ainda pouco explorado e que precisa de decisões políticas para viabilizar projetos.

"Eu exerço a necessidade da gente ter, por exemplo, uma parceria forte com o Ministério da Indústria e Comércio. O mercado livre tem que ser pensado sob a ótica de uma política de Estado no sentido de onde é que estão os pólos de desenvolvimento? Nesses polos de desenvolvimento, tem possibilidade de oferta de biogás? Essa oferta pode ser montada dentro do processo regulatório e de classificação adequada para aquele cliente?", questiona.

Estudo reconstrói um século de poluição na cidade de São Paulo com base em sedimentos aquáticos, Agência Fapesp

 José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – A história da poluição por metais na cidade de São Paulo pode ser lida nas camadas de sedimentos acumuladas ao longo do último século. Por meio da paleolimnologia – método que permite reconstruir mudanças ambientais passadas com base em testemunhos sedimentares –, pesquisadores reconstruíram um século de poluição por metais na capital a partir de amostras coletadas no Lago das Garças, no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga (Pefi). O estudo evidenciou forte correlação entre a industrialização, o crescimento populacional e o aumento desse tipo de poluente. Os resultados foram publicados na revista Environmental Science and Pollution Research.

Os cientistas analisaram as concentrações de oito metais – cobalto, cromo, cobre, ferro, manganês, níquel, chumbo e zinco – no fundo do reservatório, cujos sedimentos guardam registros de aproximadamente cem anos.

“Tudo o que vai acontecendo em uma bacia de drenagem acaba, de alguma forma, ficando registrado nos sedimentos dos ambientes aquáticos. Escolhemos o Lago das Garças pelo fato de ele nunca ter sido dragado, o que permitiu a preservação da sequência histórica da deposição de poluentes”, conta Tatiane Araujo de Jesus, coordenadora do Laboratório de Sistemas de Engenharia Ecológica da Universidade Federal do ABC (UFABC) e primeira autora do artigo.

Os pesquisadores coletaram testemunhos de sedimentos com o auxílio de mergulhadores. Esses testemunhos são cilindros verticais de material depositado do fundo do lago. Como o carbono-14 não se presta à datação de amostras relativamente recentes, as camadas foram datadas por meio do chumbo-210. O princípio físico é o mesmo do carbono-14: o decaimento radioativo do isótopo. “O chumbo-210 tem uma meia-vida de aproximadamente 22,3 anos, então, por meio da atividade desse isótopo, conseguimos atribuir uma idade a cada camada de sedimentos, como se estivéssemos numerando as páginas de um livro”, explica Jesus.


(a) Testemunho sedimentar; (b-c) Detalhe do fatiamento das amostras a cada 1 cm (fotos: Tatiane Araujo de Jesus)

Os resultados revelaram três grandes períodos na evolução da poluição por metais na cidade de São Paulo. Camadas correspondentes ao período pré-industrial, que se estendeu até 1950, apresentaram baixas concentrações de metais, refletindo uma época em que o local era menos impactado por atividades humanas. Vale lembrar que o reservatório, formado pelo represamento do córrego do Campanário em 1893, foi usado para abastecimento de água até 1928.


Planta datada de 1914 com indicação de uma represa no córrego do Campanário já em 1893 (fonte: Arquivo do Estado de São Paulo/foto: Tatiane Araujo de Jesus)

No período 1950-1975, os níveis de metais começaram a aumentar progressivamente. Fatores como a intensificação do tráfego aéreo no Aeroporto de Congonhas (inaugurado em 1936), o crescimento das montadoras e metalúrgicas no ABC Paulista e a urbanização desordenada contribuíram para o acúmulo de poluentes.

O pico da poluição ocorreu no período seguinte, 1975-2000. A partir da década de 1970, houve um aumento expressivo na concentração de metais como chumbo, níquel, ferro, cromo e cobre. Na avaliação dos dados coletados, deve ser considerado o fator local, pois o período coincide com a instalação da Rodovia dos Imigrantes (1974), que intensificou o tráfego de veículos na região. “Observamos que a maior parte desses metais detectados era proveniente de emissões veiculares e industriais”, conta a pesquisadora.

Um dos achados mais marcantes do estudo foi a queda dos níveis de chumbo nos sedimentos posteriores a 1986, quando o Brasil proibiu o uso de gasolina com chumbo por meio do Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve). “Até então, o chumbo era utilizado como aditivo na gasolina e, com sua proibição, observamos a diminuição de sua concentração nos sedimentos. Isso mostra como políticas ambientais podem ter impactos positivos e mensuráveis”, ressalta Jesus.

Apesar da redução do chumbo, as concentrações de outros metais continuaram aumentando ao longo dos anos 1990, em particular cobalto, níquel e cobre, provavelmente relacionados a mudanças nos processos industriais. Os dados indicam que uma siderúrgica próxima ao reservatório, que antes produzia aço, passou a fabricar artefatos metálicos nesse período, o que pode ter modificado o perfil da poluição metálica.

O estudo não apenas revelou a evolução da poluição por metais em São Paulo, mas também destacou a importância dos sedimentos como indicadores ambientais. “Os sedimentos são como um arquivo: eles guardam as evidências das mudanças no ambiente ao longo do tempo. Esse tipo de análise pode ser útil para guiar estratégias de proteção e recuperação do meio ambiente”, afirma a pesquisadora.

E enfatiza que, embora algumas reduções nos níveis de poluição tenham sido observadas, muitos metais persistem nos sedimentos, constituindo um passivo ambiental. “O que podemos fazer agora é usar esses dados para estabelecer metas de recuperação. Sabemos quais eram os níveis naturais desses metais antes da industrialização e podemos trabalhar para tentar reverter parte do impacto”, diz.

Além disso, o estudo traz reflexões sobre áreas de conservação, como o Parque Estadual das Fontes do Ipiranga. “Não basta apenas cercar um local e chamá-lo de área de preservação. Se a poluição atmosférica e a deposição de poluentes não forem controladas na região ao redor, o impacto continuará”, alerta Jesus.

Os resultados reforçam a necessidade de políticas públicas mais rigorosas para a redução da poluição industrial e veicular, além de medidas de recuperação ambiental em áreas contaminadas. “Os dados históricos nos ajudam a entender como chegamos até aqui e podem servir de base para decisões mais informadas sobre o futuro da qualidade ambiental da cidade”, conclui a pesquisadora.

O estudo foi apoiado pela FAPESP por meio de bolsas de doutorado concedidas a Tatiane Araujo de Jesus (04/08071-5) e a Sandra Costa‑Böddeker (04/08675-8), segunda autora do paper.

O artigo Metal pollution reconstruction in São Paulo City (Southeast Brazil) over the twentieth century by paleolimnological approach pode ser acessado em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11356-025-35998-0.