Em 1995, entrevistei uma pessoa que se identificou como Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, para uma curta reportagem na Folha sobre os candidatos recém-aprovados em um concurso da magistratura em São Paulo.
Quando foi noticiado que Wickfield não seria quem diz ser, as pessoas deram um Google em seu inusitado nome completo. Das profundezas da internet, resgataram pouquíssima coisa além desse meu texto, do qual eu mesmo não tinha a menor lembrança. Escrevi a respeito nesta mesma Folha na semana passada, mas submeto o leitor de novo ao assunto por causa de um achado curioso: minhas anotações em um surrado caderno de capa preta de 1995.
Lembrei-me de procurá-lo —sim, sou um acumulador— na esperança de entender melhor o caso. Para minha surpresa, lá estavam quatro páginas com todas as notas para a reportagem que eu já tinha esquecido. Como na Redação da Folha só havia uma cabine com gravador de ligações, era preciso anotar minuciosamente as entrevistas feitas por telefone.
No caderno, rabisquei "Edward (Limeira)", referência à cidade para a qual ele fora aprovado, e um número de telefone à moda antiga, com sete algarismos.
Claramente, a entrevista com ele foi rápida, porque ocupa menos de meia página. Há poucas informações a mais do que aquelas que publiquei então. O suposto Wickfield contou-me ter passado no concurso na segunda tentativa. Que estudava sempre sozinho. Que era filho de ingleses, o pai engenheiro, e a mãe, psiquiatra.
Outra curiosidade do meu caderno foi ver que entrevistei uma das responsáveis pela comissão do concurso, a desembargadora e professora Lucia Valle Figueiredo Collarile. Perguntei a ela sobre o nível dos candidatos. "Decepcionou profundamente", ela respondeu, frase que, relida hoje, ganha um novo sentido.
"Eu supunha que o sujeito que vá concorrer [à magistratura] fosse inspirado por valores mais altos —Justiça, ingressar numa carreira nobre", prosseguiu Collarile (que morreu em 2009). "Que a qualidade intelectual fosse melhor. A prova escrita mostrou deficiência. Não a nível jurídico, mas do próprio enunciado das ideias: erros de grafia, concordância."
Mal sabia ela que havia problema ainda mais grave. Segundo minhas notas, perguntei-lhe sobre o inusitado perfil do concursado Edward, que dizia ter morado na Inglaterra até os 25 anos. "O sistema inglês é muito diferente, basicamente jurisprudencial e consuetudinário, enquanto o do Brasil é codificado", foi tudo que anotei como resposta.
Revendo meus apontamentos, constato que entrevistei outros candidatos, não incluídos no texto final. Nas mesmas páginas estão entremeadas anotações para outras matérias apuradas simultaneamente, inclusive uma sobre a "tensão pré-Natal" de quem vai ao shopping fazer compras de fim de ano, publicada no mesmo dia, felizmente sem assinatura.
Como não havia Google, redes sociais ou currículo Lattes na época, era inegavelmente mais difícil conferir o que nos diziam. Mas mesmo essa checagem, hoje banal, não chega a ser uma vacina infalível contra fraudes; afinal, abundam na internet os perfis falsos. A lição fundamental, para o jornalismo de qualquer época, é a necessidade de manter sempre a guarda alta contra a credulidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário