quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Ruy Castro - 'Kids pretos' para a história, FSP

 Alguém já perguntou certa vez: "Suponha que você dê uma revolução e ninguém apareça?". Em novembro de 1935, levantes precipitados no Nordeste fizeram Luiz Carlos Prestes, com menos de 100 seguidores, tentar um golpe armado no Rio contra o governo de Getulio Vargas. O golpe fracassou —as tropas que deveriam se insurgir nos quartéis não acharam boa ideia e as grandes massas, sem saber de nada, também não se mexeram. Getulio aproveitou para prender e torturar milhares em todo o país.

A casa em que Prestes e Olga Benario se escondiam em Ipanema foi estourada pela polícia. Eles tinham fugido minutos antes, deixando para trás um cofre contendo documentos descrevendo cada etapa da operação, estratégias, nomes dos camaradas, seus cargos e atribuições e até o manifesto a ser lido no dia da vitória. Na casa de outro envolvido, o infeliz Harry Berger, talvez o preso político mais torturado do Brasil, encontraram-se também cartas, mapas, planos de ação, mensagens em código e até a chave do código. Era como se, um dia, um historiador fosse usar aquilo para descrever a revolução brasileira.

Os 'kids pretos' são treinados para atuar em missões sigilosas e em ambientes hostis e politicamente sensíveis - Divulgação/Exército Brasileiro

Pode ter sido esta a intenção dos golpistas de Bolsonaro, os "kid pretos", ao produzir tantas provas contra eles mesmos —deixar o material prontinho para seus futuros biógrafos. Infelizmente, a Polícia Federal chegou antes e melou tudo. Em 2022, já tivemos aquela tosca minuta de golpe que circulou alegremente por Brasília e só faltou ser distribuída nas ruas como flyers. Desta vez, os conspiradores produziram o arquivo "Punhal Verde Amarelo", um plano para matar Lula, Alckmin e Moraes.

Nele estão discriminados os fuzis, metralhadoras, pistolas, lança-rojões, lança-granadas, coletes à prova de balas, rádios, celulares, fotos, áudios e dados de geolocalização e o monitoramento dos alvos e de seus seguranças, para passar todo mundo na bala. Muito mais complexo e inspirado.

As cópias do arquivo foram impressas no Palácio do Planalto e levadas para uma reunião no Alvorada onde, olha só, encontrava-se Bolsonaro —talvez para sua rubrica em cada página e assinatura na última.

Recriminações confundem o debate sobre a derrota democrata nos EUA - Lucia Guimarães, FSP

 O defunto não estava enterrado, e já explodiu a briga entre os herdeiros. Enquanto Kamala Harris discursava concedendo a derrota, no último dia 6, o senador Bernie Sanders atacava com veemência a campanha democrata.

Sanders, um independente que se desfiliou do Partido Democrata em 2016, mas que ainda vota com eles, disse que a derrota de Kamala não era surpresa, porque o partido abandonou a classe trabalhadora e falou demais em raça e orientação sexual.

A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, discursa a apoiadores em universidade de Washington após reconhecer derrota nas eleições americanas - Kevin Lamarque - 6.nov.24/Reuters

Trabalhadores formaram a base democrata até os anos 1990, quando, sob Bill Clinton, os Estados Unidos formaram o Nafta, acordo de livre comércio com México e Canadá. O Nafta é hoje o espantalho na troca de acusações pela tripla derrota democrata neste ano. Aos 30 anos, o acordo epítome da globalização é citado frequentemente por democratas veteranos como o pecado original na alienação da classe trabalhadora.

De acordo com um velho adágio apócrifo —equivocadamente atribuído a John Steinbeck, autor de "As Vinhas da Ira"—, o socialismo não emplacava no país porque os trabalhadores americanos se viam não como proletários, mas como milionários sofrendo um embaraço temporário.

A citação ilustra argumentos de economistas sobre a mobilidade social americana, que não acham viável implementar uma agenda política de classe neste país onde 59% dos republicanos de alta renda se identificam como trabalhadores e mais da metade da população geral diz pertencer à classe média.

Na onda de análises instantâneas que tem dominado os comentários políticos, o outro inimigo dos democratas seria a política de identidade. Nos confusos estágios de luto com a derrota recente, centristas e parte da esquerda voltaram a sugerir que há uma escolha de Sofia entre privilegiar classe econômica e direitos humanos.

Trump é o 44º colocado em margem de vitória no voto popular entre as 51 eleições presidenciais nos últimos 200 anos. No momento, ele está abaixo de 50% dos votos —recebeu 49,89% contra 48,24% de Kamala. A estimativa de abstenção em 2024 é de 36%, cerca de 90 milhões de americanos com idade para votar —uma população maior do que a que votou em Trump ou Kamala. Trump volta, então, à Casa Branca com os votos de 30% dos adultos, o que não é incomum neste país onde o voto não é obrigatório.

Em 2016 e 2020, nenhum democrata venceu a eleição para senador num estado que deu vitória ao republicano. Neste ano, quatro senadores democratas levaram estados em que o republicano venceu, o que sugere uma redução do "efeito Trump".

Na Câmara, a maioria republicana, mesmo com três assentos ainda não definidos, será a menor desde a década de 1950, quando os EUA passaram a ter 50 estados. É inegável que as urnas mostraram um realinhamento demográfico. Mas, em números, a vitória republicana não reflete um mandato esmagador.

A onda de recriminações que domina o debate político, além de consumir oxigênio que seria mais bem usado para enfrentar o tsunami autoritário em curso, ignora um fator decisivo: a captura das redes sociais pela ultradireita, não só com a interferência de Elon Musk.

Os americanos, com sua dieta pobre de informação, foram às urnas nutridos por uma apocalíptica realidade paralela sobre inflação, crime, imigração e pessoas transgênero. O octogenário Bernie Sanders não oferece uma estratégia para este cenário.

Golpismo bolsonarista vem dos porões da ditadura, FSP

 

As investigações da Polícia Federal acerca das tramas golpistas no entorno de Jair Bolsonaro vão confirmando o que já se sabia: o ex-presidente é um filhote dos porões da ditadura militar, discípulo e admirador de Carlos Brilhante Ustra e da facção de torturadores e fanáticos que viviam nos subterrâneos tenebrosos do regime e acabaram derrotados durante seu processo de decadência.

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Manifestantes em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, em dezembro de 2022 - Pedro Ladeira/Folhapress

Mentiroso contumaz, sádico e inimigo da democracia, Bolsonaro foi acusado de indisciplina em campanhas por ganhos salariais no Exército e de tramar explosões de bombas para desestabilizar os comandos. Foi considerado culpado por uma junta de três coronéis e depois absolvido por 8 a 4 pelo Superior Tribunal Militar, numa decisão acochambrada, que antecedeu sua saída da Força.

Beneficiando-se de medidas judiciais heterodoxas da Lava Jato, que levaram seu maior rival à prisão, Bolsonaro cresceu num momento internacional de turbulências em democracias. Contou com o apoio de elites econômicas de visão curta, quando não apenas chucras e irresponsáveis, e de uma classe média indignada com a corrupção e com o sistema político. Ganhou ainda o voto de uma massa de "batalhadores", além de pobres desesperançados, entorpecidos pela mistificação religiosa e pelo moralismo evangélico reacionário.

Com sua experiência de ativista incendiário, Bolsonaro promoveu comícios e alastrou a politização na caserna, sob a sombra cúmplice de figuras sinistras como o general Eduardo Villas-Bôas. Seu partido usava farda.

Visto inicialmente com simpatia por setores expressivos da mídia, que acreditaram numa hipotética revolução liberal na economia a ser liderada pelo mitômano (o termo é de Persio Arida) Paulo Guedes, o ex-capitão não demorou muito a mostrar os dentes, que, aliás, já havia exibido, mas se fingia que não morderiam.

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Conhece-se bem o que se passou a viver no Brasil, um vendaval a cada semana. O governo desmontou os mecanismos de proteção ambiental, apostou contra a crise climática e as vacinas, passou a atacar a imprensa, com sua característica perversão misógina, e a solapar a lógica da democracia. O ministério, um horripilante trem fantasma, contava com um general da ativa, Eduardo Pazuello, na Saúde.

Como nunca se viu desde a ditadura, a ocupação de cargos públicos por militares e policiais disparou. Ao mesmo tempo, surgiam as relações com milicianos e apostava-se no armamentismo.

Às primeiras evidências de fracasso político, Bolsonaro entregou a chave do cofre para o centrão e tratou de investir contra as instituições que poderiam certificar uma já factível derrota eleitoral. Tramava-se contra o Estado de Direito, golpistas acampavam diante de quartéis acolhedores, e a urna eletrônica era apedrejada todo dia. Um resultado negativo seria visto como fraude.

A conspiração dos nostálgicos dos porões, que arrastou beócios extremistas à "festa de Selma", continua se revelando ao país. O complô, que incluía até planos de assassinatos de autoridades, não contava com a maioria da cúpula militar, mas nada pode ser visto como fato isolado. É preciso de uma vez por todas estabelecer um cordão de isolamento entre a política e as Forças Armadas. E revisar na Carta o artigo 142, que só fomenta pretensões fantasiosas na caserna.