domingo, 23 de junho de 2024

Por que não falamos sobre os católicos?, FSP

 22.jun.2024 às 22h00

Rodrigo Toniol

Professor de antropologia da UFRJ, é membro da Academia Brasileira de Ciências

Ao longo da última década, a nova onda conservadora do país tornou-se pauta incontornável. Tão persistente quanto o tema é a identificação dos evangélicos como os responsáveis pela guinada que o Brasil teria feito em direção à direita cristã. Muito menos observada, no entanto, são as formas e forças que grupos católicos têm desempenhado neste processo. Afinal, o que há de católico neste momento em que a identidade conservadora virou um ativo político?

A invisibilização do assunto no debate público é antes de qualquer coisa sintomática. E assim o é por três razões fundamentais. Em primeiro lugar, por mais que a paisagem religiosa nacional esteja se transformado, estamos tão habituados às formas de atuação política de parcelas católicas que suas ações passam por baixo do radar crítico dos analistas.

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Ato performático, baseado no livro e na série "O Conto da Aia", realizado pelo coletivo Bancada Feminista do PSOL, da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e da Câmara Municipal de São Paulo, contra o PL Antiaborto por Estupro, em São Paulo- Rafaela Araújo/Folhapress - Rafaela Araújo/Folhapress

Em segundo lugar, muitos dos próprios analistas de conjuntura política foram forjados em um ambiente em que o universo católico representava um horizonte de respiro à esquerda, com a forte atuação de pastorais como as de favela, saúde, carcerária e ações em prol da garantia de direitos humanos.

Por fim, os eventos históricos que envolvem estratos católicos como o Integralismo e as movimentações da Sociedade Brasileira da Tradição, Família e Propriedade (TFP) sempre foram vistas como mais orgânicas na nossa formação política do que entrada de lideranças evangélicas no regime político.

Para identificar e reconhecer a força dos católicos na nova leva conservadora, no entanto, é preciso ainda fazer um ajuste de foco. Isso porque, por contraste, ao contrário das lideranças evangélicas mais histriônicas, que usam a visibilidade das redes sociais e o próprio Legislativo para defender suas pautas, no caso dos católicos o caminho tende a ser outro.

Se é o Parlamento um dos principais espaços de vocalização de políticos evangélicos, com os católicos a atividade é mais silenciosa —nem por isso menos efetiva— e ocorre, sobretudo, no Judiciário.

Em pesquisa recente que coordenei, realizada pelo Iser (Instituto de Estudos da Religião), identificamos mais de duas dezenas de associações jurídicas católicas plenamente atuantes na judicialização de sua agenda de costumes. Associações que reúnem juristas de peso, como Ives Gandra da Silva Martins, se espalham por todo país.

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Foi no âmbito do Judiciário que, em outubro de 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu favoravelmente uma ação movida pelo Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, organização ligada à direita católica, contra as Católicas pelo Direito de Decidir —uma das mais antigas ONGs do país em defesa do direito sexual e reprodutivo das mulheres.

decisão declarava a ilicitude do grupo de se declarar católico. Segundo a sentença, há "pública, notória, total e absoluta incompatibilidade com os valores mais caros adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral e universal, segundo o qual não dependem de prova dos fatos". O posicionamento dos magistrados combinaria melhor com o timbre da Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano, do que com o de uma corte laica brasileira. E não é exceção.

Ao analisarmos o conteúdo das ações movidas por tais agentes, é possível identificar uma rede de atuação conjunta e coordenada entre diferente grupos que acionam o Judiciário em busca da criação de jurisprudência sobre temas como família, gênero e sexualidade.

Ao seguir os atores implicados nessa rede e nos debruçarmos sobre seu modus operandi, dois outros aspectos se destacam. As associações católicas investem firmemente na formação de novos quadros intelectuais. E em muitas dessas ações ocorre uma espécie de ecumenismo jurídico, em que católicos e evangélicos atuam conjuntamente em uma mesma agenda. Já é hora de olharmos para os católicos para entendermos o nosso novo conservadorismo.


RAYMUNDO PARANÁ O papel de educador já não pertence ao professor, FSP

 Raymundo Paraná

Professor titular de gastro-hepatologia da Faculdade de Medicina da UFBA; ex-presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia e da Associação Latino-Americana para o Estudo do Fígado

Ao longo de 32 anos como professor de medicina, percebi diferentes fases no ensino, seja na relação aluno-professor, seja no interesse profissional do jovem. O que ocorre nos últimos anos, contudo, é perturbante.

O ensino superior no Brasil vive um paradoxo expansionista, no qual a qualidade cedeu lugar à quantidade. Em adição, temos o papel recente das redes sociais no comportamento e aprendizado dos alunos, pois essas plataformas digitais chegaram no auge da fragilização qualitativa do ensino superior. Jamais vi tamanha modificação comportamental e de interesses!

Aula de simulação de atendimento em faculdade de medicina em São Paulo - Adriano Vizoni/Folhapress - Adriano Vizoni/Folhapress

Eu não entendo um professor que não seja educador. Quando falo educador, não me refiro à etiqueta doméstica, que deve vir da família. Refiro-me à postura, à linguagem científica, à vestimenta adequada, à conversa plástica para se fazer entendido por pessoas com níveis cognitivos e padrões socioculturais diferentes. Falo ainda da linguagem não verbal, que é ferramenta de empatia e compaixão na boa relação médico-paciente.

É inconcebível a medicina sem humanismo, como é inconcebível humanismo sem boa relação entre seres humanos —principalmente numa assimetria relacional, onde médico e paciente costumam ter expectativas desalinhadas.

As redes sociais incorporaram a superficialidade e banalizaram a importância da relação entre seres humanos no processo cura e/ou conforto. A "coisificação" humana está em curso de normalidade.

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Em um recente artigo, pacientes que realizaram consultas com uma máquina de inteligência artificial tiveram nível de satisfação um pouco maior do que aqueles que consultavam o médico. Em outras palavras, o paciente começa a abdicar de prerrogativas relacionais com o profissional de medicina para entrar no pântano do "dr. IA" em consultas.

Para piorar, o ensino médico no Brasil, cada vez mais banalizado e massificado, não se mostra capaz de mínima reação. Ao contrário: parece satisfeito com esse rumo ameaçador.

As mudanças comportamentais são a expressão de evolução da humanidade. Nas últimas décadas, tivemos muitos ganhos na compreensão holística do ser humano, na tolerância à diversidade e no reforço ao respeito. Mais recentemente, porém, esse avanço estagnou-se, aprisionado numa bolha sufocante.

As redes sociais têm um poder avassalador. A medicina não escapou da contaminação por essa virulenta doença, mas a falta de reação é mais preocupante do que a enfermidade em si. Na atualidade, aceita-se o novo normal, mesmo diante de valores tão desprezíveis.

universidade deve ser para todos, mas não para qualquer um, pois há intrínseca responsabilidade de quem recebe a unção do diploma de medicina num país tão desigual como o Brasil. Não bastassem as lacunas crescentes no mediocrizado ensino médico, o papel de educador já não pertence ao professor —o que é, particularmente, desastroso.