domingo, 23 de junho de 2024

RAYMUNDO PARANÁ O papel de educador já não pertence ao professor, FSP

 Raymundo Paraná

Professor titular de gastro-hepatologia da Faculdade de Medicina da UFBA; ex-presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia e da Associação Latino-Americana para o Estudo do Fígado

Ao longo de 32 anos como professor de medicina, percebi diferentes fases no ensino, seja na relação aluno-professor, seja no interesse profissional do jovem. O que ocorre nos últimos anos, contudo, é perturbante.

O ensino superior no Brasil vive um paradoxo expansionista, no qual a qualidade cedeu lugar à quantidade. Em adição, temos o papel recente das redes sociais no comportamento e aprendizado dos alunos, pois essas plataformas digitais chegaram no auge da fragilização qualitativa do ensino superior. Jamais vi tamanha modificação comportamental e de interesses!

Aula de simulação de atendimento em faculdade de medicina em São Paulo - Adriano Vizoni/Folhapress - Adriano Vizoni/Folhapress

Eu não entendo um professor que não seja educador. Quando falo educador, não me refiro à etiqueta doméstica, que deve vir da família. Refiro-me à postura, à linguagem científica, à vestimenta adequada, à conversa plástica para se fazer entendido por pessoas com níveis cognitivos e padrões socioculturais diferentes. Falo ainda da linguagem não verbal, que é ferramenta de empatia e compaixão na boa relação médico-paciente.

É inconcebível a medicina sem humanismo, como é inconcebível humanismo sem boa relação entre seres humanos —principalmente numa assimetria relacional, onde médico e paciente costumam ter expectativas desalinhadas.

As redes sociais incorporaram a superficialidade e banalizaram a importância da relação entre seres humanos no processo cura e/ou conforto. A "coisificação" humana está em curso de normalidade.

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Em um recente artigo, pacientes que realizaram consultas com uma máquina de inteligência artificial tiveram nível de satisfação um pouco maior do que aqueles que consultavam o médico. Em outras palavras, o paciente começa a abdicar de prerrogativas relacionais com o profissional de medicina para entrar no pântano do "dr. IA" em consultas.

Para piorar, o ensino médico no Brasil, cada vez mais banalizado e massificado, não se mostra capaz de mínima reação. Ao contrário: parece satisfeito com esse rumo ameaçador.

As mudanças comportamentais são a expressão de evolução da humanidade. Nas últimas décadas, tivemos muitos ganhos na compreensão holística do ser humano, na tolerância à diversidade e no reforço ao respeito. Mais recentemente, porém, esse avanço estagnou-se, aprisionado numa bolha sufocante.

As redes sociais têm um poder avassalador. A medicina não escapou da contaminação por essa virulenta doença, mas a falta de reação é mais preocupante do que a enfermidade em si. Na atualidade, aceita-se o novo normal, mesmo diante de valores tão desprezíveis.

universidade deve ser para todos, mas não para qualquer um, pois há intrínseca responsabilidade de quem recebe a unção do diploma de medicina num país tão desigual como o Brasil. Não bastassem as lacunas crescentes no mediocrizado ensino médico, o papel de educador já não pertence ao professor —o que é, particularmente, desastroso.

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