segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

João Pereira Coutinho - Mundo dominado por radicais pelados seria retorno à pré-história, FSP

 Houve um tempo em que as guerras culturais me deprimiam. Não mais. Com a meia-idade, uma pessoa aprende a duras penas que a estupidez tem mais energia do que nós.

Melhor sentar no sofá e, contemplando a cápsula de cianeto para qualquer emergência, deixar o cortejo passar.

Uma universidade na Califórnia anunciou por esses dias que a palavra "field" ("campo") deixará de ser usada nas aulas.

Campo, segundo o dicionário, significa "um terreno plano e extenso destinado à agricultura ou às pastagens".

Vaqueiros laçam bezerro no campo/pampa uruguaio - Luiz Carlos Murauskas - 28.nov.1995/Folhapress

Usado em contexto acadêmico, se refere a uma área científica ou a uma prática de investigação ("trabalho de campo", por exemplo).

PUBLICIDADE

Não para a University of Southern California. "Campo" remete imediatamente para os campos de algodão onde os escravos eram forçados a trabalhar. Em nome de um espaço seguro e inclusivo, a palavra será substituída por "practicum", o que não deixa de ter variações engraçadas.

Na física, um campo magnético será um practicum magnético. Em história, um campo de batalha será um practicum de batalha. O mesmo para um practicum de concentração.

Em 2022, no "practicum" de Waterloo, na Bélgica, atores reencenam a famosa derrota de Napoleão, em 1815 - Zheng Huansong - 18.jun.2022/Xinhua

E, na linguagem comum, imagino convites para o fim da semana. "Vamos passar uns dias na minha casa de practicum?" "Não, prefiro praia."

A medida, que parece delirante, na verdade é bem modesta se considerarmos o vasto campo –peço desculpa: o vasto practicum de heranças perversas que a civilização nos deixou.

Para ficarmos ainda no practicum de algodão, é só uma questão de tempo até alguém sugerir que o próprio algodão deveria ser banido de vez. Como tolerar uma fibra que, desde o antigo Egito, está invariavelmente marcada pela servidão?

Aliás, é difícil encontrar uma peça de roupa que não transporte a marca de um crime qualquer, sobretudo contra animais. Não será a nudez total a única forma de nos redimirmos de vez?

Além disso, e como notaram vários críticos da medida, é estranho que, na ânsia de purificar o mundo pela purificação da linguagem, os novos inquisidores tenham escolhido uma palavra latina, ou seja, falada pelos romanos, conhecidos esclavagistas (e imperialistas). Será que ninguém reparou?

Lamentável. Ou a universidade inventa uma palavra nova para designar campo (e algodão e também universidade e tudo mais que faz parte da língua), ou só o silêncio nos salvará do erro e da barbárie.

Felizmente, a direita radical é tão inteligente quanto a esquerda radical. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para os Estados Unidos, onde os fogões a gás estão no centro de uma discussão feroz. Será que a administração Biden vai entrar na casa dos americanos para remover essas preciosidades?

A Casa Branca já respondeu que não tenciona fazer isso. Mas a direita radical não se convence: se os fogões a gás fazem mal à saúde e ao ambiente, é uma questão de tempo até haver uma lei qualquer que proíba o bom povo de contemplar uma chama de fogo verdadeira. E, claro, de se matar lentamente enquanto faz a janta.

Composição de três botijões de gás com imagem de caveira indicadora de toxidade por dentro
Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho de 17.jan.2023 - Angelo Abu

Por mim, estejam à vontade. Mas não deixa de ser fascinante esta guerra constante entre a direita radical e as mais básicas informações científicas. É como se os avanços no conhecimento fossem uma ameaça existencial.

Sou até capaz de imaginar uma peça de teatro em que Alexander Fleming, transportado para o século 21, é obrigado a se esconder.

"Vai pra Cuba, Fleming!", gritam uns.

"Penicilina não entra no meu corpo, não", gritam outros.

Nas redes sociais, um deles garante: "Infecção é com sanguessugas mesmo. Vou continuar com esses bichinhos lindos chupando meu braço, como já faziam meus avós."

O que é válido para antibióticos é igualmente válido para anestesias, odontologias e qualquer fármaco inventado nos últimos, digamos, 150 anos.

Pergunta o médico: "O senhor quer um calmante ou prefere a boa e velha lobotomia?".

Responde o doente: "Não confio em químicos, venha o berbequim."

É nesses momentos que, flertando com minha cápsula de cianeto, imagino um mundo dominado por radicais.

De um lado, gente pelada e grunhindo, para não ofender sensibilidades.

Do outro, gente incapaz de conceber uma forma alternativa de cozinhar que não passe por um belo fogo.

Agora que penso nisso, esse mundo cavernícola não seria tão original assim: basta recuar uns 50 mil anos e encontrar nossos antepassados na escala da evolução.

O futuro da história é a pré-história.

Restauração de relógio de dom João 6º danificado por bolsonarista é incerta, dizem autoridades, FSP

 Victoria Azevedo

BRASÍLIA

relógio trazido ao Brasil por dom João 6º em 1808 foi depredado por um manifestante que usava uma camiseta estampada com o rosto do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a invasão do Palácio do Planalto no domingo (8).

Imagens do circuito interno de câmeras do Palácio do Planalto mostram o homem derrubando a peça da mesa na qual estava exposto. As imagens foram divulgadas pelo Fantástico, da TV Globo, no domingo (15).

A possibilidade de restauro da peça, segundo membros do governo federal, ainda é incerta, uma vez que se trata de uma peça única.

No terceiro andar do Palácio do Planalto, um pedaço vivo da história do país, o relógio que Dom João VI trouxe para o Brasil em 1808 foi destruido as 15h33 . imagens inéditas das câmeras de segurança do Palácio do Planalto. As cenas registradas mostram a destruição promovida pelos extremistas bolsonaristas.
Imagens do circuito interno do Palácio do Planalto mostram um homem vestindo uma camiseta estampada com o rosto do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) depredando relógio de dom João 6º - Reprodução/TV Globo

O relógio estava exibido no terceiro andar do Planalto, no mesmo piso onde está localizado o gabinete do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Nas imagens, esse mesmo manifestante golpista anda livremente pelo andar e tenta desligar o disjuntor, para cortar a energia elétrica. Ele também busca extintores de incêndio e os usa para tentar quebrar a câmera de segurança que flagrou a sua ação.

Único exemplar da peça no mundo todo, o objeto foi dado de presente a dom João 6º pela corte de Luís 14, da França. A obra foi desenhada por André-Charles Boulle e fabricada pelo relojoeiro francês Balthazar Martinot no fim do século 18, poucos anos antes de ser trazida ao Brasil.

PUBLICIDADE

Os ponteiros e números do relógio foram arrancados e uma estátua que enfeitava o topo da peça foi arrancada.

Imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto mostram o momento em que homem destrói o relógio que Dom João 6º trouxe para o Brasil, em 1808
Imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto mostram o momento em que homem destrói o relógio que Dom João 6º trouxe para o Brasil, em 1808 - Reprodução - 8.jan.2023/TV Globo

Relatório preliminar do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) que mapeia os danos ao patrimônio causados nos atos golpistas, divulgado na semana passada, aponta que as peças internas do relógio foram recolhidas e catalogadas "para futuro restauro" e que ele teve fragmentos separados de seu suporte.

O texto aponta ainda que o relógio está "fragmentado em toda sua extensão, apresentando fissuras, deformações e perdas".

O presidente do Iphan, Leandro Grass, afirmou à imprensa que há uma "indefinição" sobre a possibilidade de restauro da peça, algo já levantado pela ministra Margareth Menezes, da Cultura, também na semana passada.

"O relógio mesmo que foi quebrado, parece que não sabemos se vai ter condições de restaurar, uma peça única", afirmou Margareth na terça-feira (10).

"O próprio relógio que está lá no Palácio do Planalto, há uma indefinição, porque não existe hoje no Brasil, por exemplo, uma estimativa, uma percepção de que é possível restaurar ele aqui. Tudo isso vai ser aprofundado de acordo com orientações das diretorias de acervo de demais órgãos", disse Grass a jornalistas no último dia 12.

De acordo com publicação do site do governo federal, existem no mundo apenas dois relógios fabricados por Martinot. O outro está exposto no Palácio de Versalhes, na França, mas tem metade do tamanho da peça que foi destruída. O valor do relógio danificado é considerado fora de padrão, diz o texto.

Epidemia de drogas Z, para insônia, gera dependência e sonambulismo, FSP

SÃO PAULO

Um vídeo postado numa rede social no final de dezembro fez soar um alerta entre os amigos de Matias (nome fictício). Era o registro de um inusitado passeio na chuva pela orla do Rio de Janeiro, narrado com uma voz estranhamente embargada.

"Eu tomei um zolpidem de tarde porque estava muito ansioso e queria dormir, mas fiquei mexendo no celular, e essa é a última lembrança que eu tenho daquele dia", conta à Folha o estudante de administração de 22 anos, que foi resgatado por um amigo e levado para casa.

Drogas Z, medicamentos hipnóticos indicados para insônia, tiveram explosão de vendas no Brasil e podem gerar dependência e sonambulismo, colocando pacientes em risco
Drogas Z, medicamentos hipnóticos indicados para insônia, tiveram explosão de vendas no Brasil e podem gerar dependência e sonambulismo, colocando pacientes em risco - New Africa/Adobe Stock

Zolpidem é o nome de um dos medicamentos hipnóticos indicados para insônia cujas vendas explodiram no Brasil nos últimos anos. Segundo a Anvisa, entre 2019 e 2021, elas cresceram 73% para a versão de 5mg, a mesmo que Matias tomou.

Esses remédios são conhecidos como drogas Z, em razão dos nomes que as substâncias receberam: zolpidem, zopiclona (ou eszopiclona) e zaleplona. Ingeridos durante qualquer atividade, promovem estados dissociados, como confusão e sonambulismo, o que coloca a pessoa em risco. E geram dependência quando usados durante longos períodos.

As redes sociais estão repletas de relatos de pessoas que, sob o efeito de zolpidem, fizeram compras extravagantes para muito além de seus recursos, deram declarações desconexas ou embaraçosas e agiram de maneira confusa ou mesmo violenta.

"As parassonias, comportamentos não desejáveis durante o sono, são um efeito colateral importante do uso de drogas Z", explica a médica neurofisiologista Letícia Azevedo Soster, especialista em medicina do sono e coordenadora da pós-graduação em sono do Hospital Israelita Albert Einstein.

"Tem histórias de pessoas que se machucaram, que compraram coisas e que agrediram outras pessoas, com implicações forenses. É bastante perigoso", alerta.

Diversas celebridades já culparam o zolpidem por comportamentos inoportunos. Em 2018, a atriz Roseanne Barr teve seu programa na TV americana cancelado depois de um tuíte racista que, afirmou ela, foi redigido sob o efeito do medicamento. O laboratório Sanofi, fabricante do remédio que Barr afirmava ter tomado, emitiu uma nota dizendo que "racismo não era um efeito colateral" de seu produto.

Tuítes bizarros de Elon Musk também foram creditados pelo bilionário como obra do zolpidem. Em 2017, o golfista Tiger Woods foi preso e processado após ser encontrado, desacordado, dentro de seu carro numa estrada, num efeito que atribuiu ao medicamento.

E, ainda em 2010, o ator Charlie Sheen culpou o remédio pela quebradeira que promoveu no quarto de um hotel em Nova York. "É a aspirina do demônio", disse, um ano depois, numa entrevista.

As drogas Z emergiram há cerca de 20 anos com a promessa de combater a insônia e promover um sono rápido e com poucos efeitos colaterais em comparação aos medicamentos até então disponíveis.

"Os pacientes relatam que são drogas que fazem a pessoa fechar os olhos e dormir, como se fosse um botão de desligar", conta Soster. "A indústria vendeu essas drogas como se elas não promovessem o efeito-ressaca de outras medicações nem tivessem efeitos colaterais. Não é verdade", alerta.

A médica aponta para riscos e problemas relacionados ao uso prolongado ou excessivo dessas substâncias.

"As pessoas estão usando cada vez maiores quantidades de drogas Z porque, com o tempo, se tornam refratárias a elas. Já recebi um paciente que estava tomando 40 comprimidos por noite de zolpidem para conseguir dormir."

Foi o caso de Marcelo (nome fictício), 19, que começou a tomar zolpidem aos 15, após o diagnóstico de ansiedade e depressão associado a dificuldade para dormir. Chegou a tomar 30 comprimidos por semana e admite ter usado o medicamento não só para dormir, mas para ter alucinações durante o período de vigília.

"A cada semana, eu usava mais e mais. Passei a confundir o que era sonho com o que era realidade, vivia em atrito com a minha família, foi destruidor", diz. Para conseguir medicação suficiente, o hoje estudante de arquitetura conta que falsificava cópias das receitas e mentia para psiquiatras.

Soster explica que, no processo de difusão de drogas Z no Brasil, dois fatores são complicadores. "Primeiro, o fato de o brasileiro ser um povo que tende a ser ansioso, o que potencializa a ocorrência de problemas com o sono", aponta.

Letícia Soster, neurofisiologista e especialista em medicina do sono, no instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde também atua como médica e pesquisadora
Letícia Soster, neurofisiologista e especialista em medicina do sono, no instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde também atua como médica e pesquisadora - Zanone Fraissat/Folhapress

Segundo um estudo realizado por cientistas da USP e da Unifesp e publicado na revista Sleep Epidemiology, 65% dos brasileiros relatam ter algum problema relacionado ao sono.

"O segundo é o fato de o Brasil ter um sistema híbrido de saúde, meio público e meio privado. Então, o paciente vai num sistema, recebe indicação do remédio, vai em outro, recebe também", conta. "E como os sistemas não estão interligados, ninguém percebe essa duplicidade, que tem acontecido muito com as drogas Z, que são remédios controlados. Isso sem falar no mercado clandestino."

A médica explica que os problemas de sono ganharam maior amplitude durante a pandemia da Covid-19, quando o gasto energético do cotidiano ficou reduzido com o distanciamento social e o aumento do uso de telas incrementou os estímulos do cérebro que nos mantêm acordados.

"Isso fez a preocupação relacionada ao sono aumentar, e essa é a base da insônia crônica. A preocupação se torna maior do que o problema em si, ativando o mecanismo de alerta e gerando o desejo de controle do sono", explica. "As pessoas querem deitar e dormir imediatamente sem assumir as responsabilidades pelos seus próprios processos físicos necessários para isso."

Regular o horário de dormir e de se levantar, fazer exercícios físicos regulares, expor-se à luminosidade durante o dia, reduzir o tempo de tela de noite e cessá-lo horas antes de ir para a cama são algumas dessas responsabilidades a que Soster se refere.

"É como numa dieta: a pessoa quer emagrecer, mas não quer cortar gorduras nem carboidratos. E, então, toma um remédio para isso."

O desejo de um controle absoluto sobre o sono com o mínimo esforço, diz ela, também está por trás da epidemia de drogas Z. "Não tem absurdo maior do que tomar uma droga para dormir e outra para acordar. É isso o que está acontecendo hoje em dia."