quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Indulto no massacre do Carandiru é despropósito, FSP

 Ademar Borges

Doutor em direito público (Uerj), é professor de direito constitucional do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa)

Pierpaolo Cruz Bottini

Advogado e professor de direito penal da USP

Indultar é extinguir a pena aplicada a alguém em decorrência da prática de crimes, é declarar que o castigo não mais será executado. No Brasil, cabe ao presidente da República conceder o indulto a quem quiser, exceto para condenados pela prática de crimes hediondos, tortura, tráfico de drogas e terrorismo.

Trata-se de uma das formas de participação do chefe do Executivo na política criminal do país. A Constituição confere liberdade para o presidente conceder ou não o indulto, bem como para fixar seus requisitos e extensão. O controle judicial sobre seu conteúdo é restrito e excepcional, cabendo ao Supremo Tribunal Federal analisar —quando provocado— apenas sua constitucionalidade ou adequação a tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.

Detentos exibem faixas de luto após massacre do Carandiru, em São Paulo (SP) - Ormuzd Alves - 5.out.92/Folhapress

Nesse contexto, deve ser discutido o indulto natalino de 2022, que extinguiu a pena dos agentes de segurança pública "condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de 30 anos". O objetivo foi impedir a responsabilização dos policiais envolvidos no massacre do Carandiru, ocorrido há 30 anos, sem julgamento definitivo.

O ato é objeto de intensas críticas. A primeira delas: o indulto deve ser genérico, voltado a um coletivo de pessoas abstratas. Não poderia ser usado para perdoar especificamente os responsáveis pelo massacre do Carandiru. Não parece uma objeção correta. Ao lado do indulto coletivo, a Constituição também prevê o indulto individual —chamado de graça e destinado a pessoas ou casos específicos, de forma que nada impede a concessão em prol de uma ou um grupo determinado de agentes.

A segunda objeção tem por base a já citada proibição de concessão de indulto àqueles que praticaram crimes hediondos. Esse é o fundamento do pedido da Procuradoria-Geral da República para que o STF invalide o decreto de indulto de 2022. Para fugir dessa vedação, o ato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) determina que o benefício se aplica apenas sobre delitos que não eram considerados hediondos no momento da sua prática (caso dos crimes cometidos no Carandiru).

A questão: o presidente pode indultar um delito que passou a ser considerado hediondo após a sua prática? Em 2013, o STF, em caso sob a relatoria da ministra Rosa Weber, afirmou que o relevante —para fins de indulto— é a qualificação do crime como hediondo no momento do decreto presidencial, não no de sua ocorrência. Sob essa perspectiva, o benefício aos agentes do Carandiru seria inconstitucional porque, na data do decreto, tais crimes eram considerados hediondos. Tal argumento afeta um tema caro no direito penal, a irretroatividade da lei penal quando prejudicial ao réu, e por isso mesmo segue controverso e polêmico.

Mas há uma terceira objeção: os delitos indultados constituem graves ofensas contra os direitos humanos —delitos de lesa-humanidade—, que não podem ser objeto do benefício sob pena de violar compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos consideram inválidas anistias e indultos amplos, que impõem restrições ao dever de investigar, julgar e sancionar graves violações de direitos humanos (e. g. "Barrios Altos vs. Perú"). A Corte Interamericana apenas autoriza a renúncia de ações penais contra responsáveis pela grave violação de direitos humanos quando necessária para negociar o fim de uma guerra ("Masacres del Mozote vs. El Salvador"), não sendo esse o caso do massacre do Carandiru. Assim, são elevadas as chances de condenação internacional do Brasil pelo indulto em análise. Vale lembrar que a presidente do Supremo, Rosa Weber, ao julgar um indulto natalino do ex-presidente Michel Temer (MDB), chegou a mencionar a possível inconstitucionalidade da concessão de benefícios para crimes de lesa-humanidade (ADI 5.874).

incentivo à violência policial foi uma das marcas do governo Bolsonaro. O indulto concedido aos responsáveis por um dos mais graves massacres da história do país é o retrato desse projeto de institucionalização do direito de matar impunemente vidas, em especial vidas negras. O STF dispõe de argumentos para impedir que seja bem-sucedida essa abjeta tentativa de deixar, no apagar das luzes do governo, uma marca perene de racismo, impunidade e desumanidade.

Ruy Castro - O gênio a domicílio, FSP

 Talvez o futebol deva ainda mais a Pelé do que tudo que se escreveu sobre ele desde sua morte na quinta última (29/12). Só o fato de os artigos estarem saindo em todos os países e línguas já devia nos alertar para um fato até agora pouco observado: o de que Pelé foi o primeiro jogador internacional do futebol.

Não há tese mais fácil de comprovar. Quem poderia ter sido antes dele? O brasileiro Friedenreich nos anos 1910? O espanhol Zamora nos anos 1920? O argentino Stábile, o tcheco Nejedlý, o italiano Meazza ou o brasileiro Leônidas nos anos 1930? O inglês Stanley Matthews, o uruguaio Schiaffino, o argentino Moreno ou os brasileiros Zizinho e Ademir nos anos 1940? O francês Kopa, o argentino Di Stéfano, o húngaro Puskás ou os brasileiros Garrincha e Didi nos anos 1950? Todos grandes, mas, pela lerdeza dos navios e dos primeiros aviões e também pela Segunda Guerra, foram jogadores pouco mais que nacionais.

Raro um deles atuar fora de seu continente. Di Stéfano era argentino, mas jogava no Real Madrid e nunca veio ao Rio. Zizinho só foi à Europa uma vez. Puskás veio ao Brasil em 1957 com o Honved, mas a nenhum outro país da América do Sul. Garrincha e Didi brilharam na Europa e viviam com o Botafogo na América Central, mas nunca chegaram perto do Oriente Médio, do Japão ou da África. Os outros, também não.

Entre 1960 e 1970, Pelé foi a todos esses lugares com o Santos. O mundo queria vê-lo. Passava tanto tempo em aviões quanto no gramado. Jogou nos cinco continentes, país por país, conquistou-os a todos e, já encerrada a carreira, foi catequizar o pior território do mundo para o futebol: os EUA. E conquistou-o também. Hoje, tanto os craques quanto os cabeças de bagre estão em toda parte pela internet. Pelé teve de levar seu gênio a domicílio.

Nenhum dos milionários "tetra" ou "penta" foi à sua despedida. Não fizeram falta. Pelé estava lá.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Deirdre Nansen McCloskey - Superabundância, FSP

 Todo mundo sabe que o crescimento demográfico é o principal problema que enfrentamos, certo? Afinal, é uma questão de bom senso. Em 1800 havia cerca de 1 bilhão de pessoas. Hoje há mais de 8 bilhões. A Terra é finita. Se a população cresce, precisamos alimentar as pessoas adicionais.

Então vamos queimar mais floresta amazônica para criar mais áreas de pasto para gado de corte. Vamos usar mais água doce dos recursos minguantes ao norte de São Paulo, esgotando a represa Jaguari. Condenada.

Passageiros caminham em estação movimentada em Seul, na Coreia do Sul - Jung Yeon-je/AFP

Todos os cientistas físicos e biólogos que você conhece acreditam nesse cenário fatídico, que inspirou, por exemplo, a esterilização compulsória na Suécia entre os anos 1920 e os 1970, a antiga política do filho único na China e as previsões tenebrosas do biólogo estudioso de borboletas Paul R. Ehrlich. Em 1968, em "The Population Bomb" (a bomba demográfica), ele declarou: "A batalha para alimentar toda a humanidade acabou. Centenas de milhões de pessoas vão morrer de inanição nas décadas de 1970 e 1980."

Nenhuma das previsões científicas de Erhlich se realizou. Hoje a Índia é exportadora de grãos. A taxa mundial de mortalidade caiu em mais de um terço desde 1968. Apesar do que lemos nos jornais, a desigualdade diminuiu em todo o mundo. Em 1960, 4 bilhões dos 5 bilhões de humanos consumiam míseros US$ 2 por dia. Agora esse número é 1 bilhão entre 7 bilhões.

As grandes crises de escassez de alimentos em larga escala praticamente desapareceram. Estamos suficientemente ricos para podermos fazer alguma coisa pelo ambiente. O crescimento demográfico se deu em paralelo com um aumento acentuado na produtividade.

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Por que está equivocada a ideia de que uma população maior nos empobrece? Bem, ela foi verdade em certa época. Deixou de ser quando Robert Malthus lançou "Principle of Population", um dos livros mais assustadores de todos os tempos. E equivocado.

Para descobrir a verdade completa e otimista, contrariando Malthus e Ehrlich, você precisa ler um livro de Marian Tupy e Gale Pooley, "Superabundance: The Story of Population Growth, Innovation, and Human Flourishing on an Infinitely Bountiful Planet" (Superabundância: a história do crescimento demográfico, inovação e florescimento humano num planeta infinitamente generoso).

Com prosa que prende a atenção e dados fascinantes, a obra mostra que mais pessoas, se liberadas, nos tornam mais ricos. Elas têm novas ideias para carros elétricos, captura de carbono e aplicativos de computador. E vêm fazendo isso desde 1798.

Então parem de se preocupar com o crescimento demográfico. E mandem traduzir "Superabundance" para o português.