segunda-feira, 23 de maio de 2022

Transformar as cidades paulistas, FSP

 

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

crise sanitária de Covid-19 atingiu a todos, mas sobretudo a população das áreas de maior vulnerabilidade. Ficou explícita a correlação entre qualidade de vida e qualidade urbana, evidenciando o papel da arquitetura e do urbanismo para promoção de cidades mais saudáveis.

A importância que as cidades devem ter no debate público fica nítida ao olharmos os dados da Fundação Seade. Nada menos que 96% dos 45 milhões de habitantes do estado de São Paulo vivem nas áreas urbanas de seus 645 municípios.

As eleições que se aproximam são uma oportunidade para discutir publicamente e engajar candidatos em uma agenda de ações emergenciais e estruturais para trazer a qualidade de vida nas cidades a patamares compatíveis com a dignidade da vida humana.

Para se ter uma ideia, o estado possui 335 mil moradias em condições precárias, com 1,6 milhão de habitantes sem acesso à água potável e 6,3 milhões sem tratamento de esgoto. A macrometrópole paulista, que abriga quase dois terços dos habitantes e concentra mais de 80% do PIB de São Paulo, apresenta os mais graves problemas.

É uma realidade alarmante, mas que não surpreende considerando a situação do planejamento territorial no estado: 64% dos municípios não possuem Plano Municipal de Mobilidade e 20% não possuem Plano Diretor —o instrumento básico da política urbana. Situação agravada nos últimos anos com a extinção de órgãos estaduais de planejamento.

As cidades precisam de um projeto de transformação do cenário atual, a ser pactuado com a sociedade e construído a partir de políticas públicas articuladas e duradouras. O cenário futuro é ainda mais desafiador se considerarmos os relatórios da Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, demandando medidas ambiciosas e urgentes.

As entidades de arquitetura e urbanismo do estado de São Paulo elencaram cinco pontos para uma agenda pautada no reconhecimento da arquitetura e do urbanismo como política de Estado e como plataforma para efetivação de direitos:

1 - Elaborar e implementar um projeto de desenvolvimento estadual baseado na integração de políticas públicas a partir de territórios estratégicos, respeitando a diversidade regional: regiões metropolitanas, cidades pequenas e médias, cidades litorâneas e ribeirinhas, periferias, centros históricos, áreas rurais, de povos tradicionais, de proteção ao patrimônio cultural, ambiental e arquitetônico;

2 - Ampliar e qualificar o sistema de transporte público regional, por meio de ferrovias e hidrovias, e o sistema de transporte público urbano, com prioridade para mobilidade a pé, de bicicleta, ônibus elétricos e metrô, como definido na Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana. O objetivo é a maior integração das cidades, pessoas e cargas, conjugando intermodalidade e descarbonização;

3 - Priorizar as áreas de maior vulnerabilidade socioambiental com investimento em políticas de promoção da cidadania, de geração de renda, urbanização de favelas e melhorias habitacionais com a aplicação da Lei da Assistência Técnica Pública e Gratuita para Habitação de Interesse Social;

4 - Valorizar os ecossistemas regionais e suas paisagens, fomentando infraestruturas verdes, agricultura urbana e adoção de matrizes energéticas renováveis orientadas para a reindustrialização e para viabilizar uma economia verde e solidária;

5 - Implementar estrutura de gestão das regiões metropolitanas, dotadas de fundo próprio para investimentos, participação da sociedade civil nas decisões de planejamento e orientadas por projetos urbanísticos definidos nos Planos de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI), como previsto pela Lei do Estatuto da Metrópole.

Diante da urgência, entendemos que o estado de São Paulo pode assumir, neste momento, um importante papel na transformação das cidades brasileiras em direção à justiça social e verde.

Ana Maria Góes Monteiro
Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (Abea)

Catherine Otondo
Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU-SP)

Fernando Túlio Franco
Instituto de Arquitetos do Brasil - São Paulo (IABsp)

Milene Abla Scala
Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (AsBEA)

Marco Antonio Teixeira da Silva
Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (Sasp)

Luciana Schenk
Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abap)

Victor Massao
Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo (FeNEA)

Marcus André Melo - Antipetismo e antibolsonarismo, FSP

 Em coluna nesta Folha ("Polarização à brasileira, Política), Demétrio Magnoli aponta uma contradição na minha afirmação de que a hiperfragmentação e o baixíssimo partidarismo político no Brasil têm criado um partidarismo negativo assimétrico (envolvendo apenas o PT). Argumenta que "no Brasil, polarização é termo ilusório: uma forma de descrever (e ocultar) a dinâmica do antipetismo".

Acredito que a incompreensão se deva à ideia de partidarismo assimétrico. A evidência é clara: 83% dos entrevistados no Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) 2018 não tinham preferência por um partido. O escasso partidarismo vem de longe: Loewenstein, autor de "Hitler's Germany" (1939) e "Brazil under Vargas" (1942), negava que o Estado Novo fosse nazista ou fascista, pois Vargas não contava com um partido.

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A polarização atual envolve o bolsonarismo, que não é um partido. Bolsonaro "alugou" um micropartido para se eleger e permaneceu, de 2019 a 2021, sem afiliação. Como falar de partidarismo negativo no seu caso? Lula é muito mais que o petismo, mas o PT é o único partido com alguma identificação partidária no eleitorado (embora, devido à hiperfragmentação, detenha meros 11% das cadeiras na Câmara). No bolsonarismo inexiste ancoragem partidária.

Daí falarmos em assimetria: o antibolsonarismo se opõe ao antipetismo, não ao antilulismo. Não há "polarização à brasileira"; mas ela não é ilusória. Sua singularidade entre nós deve-se à assimetria partidária. Há um outro debate associado à rubrica polarização assimétrica nos EUA, em torno do partido no qual a radicalização seria maior. No Brasil ele nem sequer faria sentido, dada a fluidez partidária.

Magnoli acrescenta: "o antipetismo é álibi conveniente para evitar a crítica política". Trata-se aqui do antipetismo como estratégia discursiva. Sim, ele buscou blindar e desqualificar toda tentativa de responsabilização do governo por parte da oposição quanto à economia e à corrupção exposta.

E mais: o discurso de demonização da oposição sob o PT está longe de ser especificidade brasileira: elites sórdidas e povo virtuoso é mantra populista. O discurso de Chávez é canônico ("repolarización - nosostros, los patriotas; y ellos, los traidores") e está presente também no bolsonarismo.

Essa virulência contra a oposição sugere um paralelo com o padrão nas democracias avançadas no século 19. A democracia só se estabiliza quando o sistema partidário se consolidou, permitindo alternância no poder. O que pressupõe, como mostrou Hofstadter, a aceitação da oposição comprometida com o sistema constitucional (consubstanciada na expressão "Her Majesty most loyal opposition"); como "governo-em-potência", não ameaça existencial.


Ruy Castro Poderosos padrinhos, FSP (definitivo)

 A nigeriana Chimamanda Adichie, uma das principais escritoras da atualidade, falou para 3.000 pessoas no Rio outro dia, durante um evento literário no Maracanãzinho. Imagino que grande parte da plateia a admire por seus romances, como "Hibisco Roxo" e "Americanah". Outra parte pode tê-la descoberto quando trechos de seus discursos em órgãos internacionais sobre feminismo e racismo foram citados pela estrela Beyoncé numa canção que escalou as paradas. Antes disso Chimamanda já era admirada, inclusive no Brasil, onde é traduzida por Julia Romeu. Mas o endosso de Beyoncé pode lhe ter dado um público que a literatura não costuma atingir. Se isso faz com que mais gente ouça a sua voz, melhor ainda.

O endosso de um artista por outro mais famoso nunca é demais. Verlaine lançou Rimbaud, Jean Cocteau lançou Raymond Radiguet, Sartre lançou Jean Genet. Gertrude Stein lançou Hemingway, que, em troca, debochou dela, 40 anos depois, em "Paris É uma Festa". Mistinguett lançou Maurice Chevalier, Edith Piaf lançou Yves Montand. Carmen Miranda lançou Dorival Caymmi. E Bing Crosby avalizou Frank Sinatra: "Frank é um desses cantores que só surgem uma vez na vida. Mas tinha de ser na minha vida?".

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Às vezes, o endosso pode ser involuntário. Em 1919, Ruy Barbosa viu no Jeca Tatu ridicularizado por Monteiro Lobato em "Urupês" uma vítima das oligarquias e, como disse isso num discurso de campanha presidencial, a venda do livro disparou. "Não ficou um", vibrou Lobato.

Em 1960, James Bond era só um detetive de ficção como muitos, nem de longe popular como Mike Hammer ou Ellery Queen. Mas John Kennedy, eleito presidente dos EUA e indagado sobre o que gostava de ler, surpreendeu: "Os romances de Ian Fleming com o agente 007". Ninguém sabia quem era. Foram ver e deu no que deu.

Talvez eles não precisassem de padrinhos. Mas nenhum o dispensou.

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, na 4ª edição da LER, no estádio do Maracanãzinho, no Rio - Alexandre Brum/Agência Enquadrar/Folhapress