Só a ideia de que somos infalíveis justifica a morte em nome de uma ideia
Não discuto aqui o texto e muito menos o direito que o jornalista tinha de escrever um artigo desejando a morte do presidente. Inúmeras vezes defendi nesta coluna a cultura da primeira emenda e não seria diferente agora.
O que me impressionou foi a quantidade de gente que veio depois do artigo para racionalizar o desejo de morte. Não se tratava de vociferar na internet sobre prender e arrebentar. Eram discussões aparentemente sérias sobre uma possível “solução lógica”, isto é, para além da paixão política, para justificar o fim de um desafeto político.
Por óbvio, o desafeto poderia ser qualquer um. O raciocínio aqui independe de preferência política. E o ato de matar apenas uma vontade. Ninguém tem (ao menos ainda) a prerrogativa de realmente liquidar o outro. Em um episódio de “Black Mirror” criaram umas abelhinhas que faziam o trabalho. Por aqui, imagino, seriam outros bichos.
Lendo essas coisas tive a nítida intuição de que havíamos chegado ao fundo do poço. Fim da linha de um tipo obsessivo de polarização política. Talvez o extremo do que fala Bari Weiss em sua carta de renúncia ao The New York Times.
A diferença é que aqui fomos muito além da “autocensura” ou da negação do outro. Nos colocamos a especular sobre sua simples eliminação.
Há um lado nonsense nisso tudo. Nossa jovem democracia tropical discutindo a morte lógica. Talvez não devesse me surpreender. O ódio político é um traço comum das democracias polarizadas e é possível pensar o desejo de morte como sua consequência extrema.
Sua premissa é uma ideia há muito conhecida da filosofia: a recusa do princípio da falibilidade. Significa o seguinte: dado que detenho a verdade e que minha razão seja tão completa, eu “sei” que ele deve morrer. Sei porque a razão, ela mesma, me revela.
John Stuart Mill, no século 19, levou esse debate ao estado da arte em “On Liberty”. Mill diz que as verdades humanas são, em sua maioria, “apenas meias verdades”, e que “enquanto todo mundo sabe que é falível, poucos acham necessário se precaver contra sua própria falibilidade”.
A suposição é simples. Eliminar a posição do outro só faria sentido se alguém tivesse “absoluta certeza” da verdade. Mill talvez mudasse de ideia se tivesse conhecido nossos alegres donos da verdade tropicais. Mas acho que não. Acharia graça que um século e meio depois ainda não aprendemos.
Mill tratava da supressão de opiniões, e é disso que trata o debate político. A ideia de que alguém é capaz de dizer se uma ideia ou decisão (ou pior: alguém) é “útil” perante o tribunal da história. Recorrer ao princípio da utilidade não passa de um truque. “A utilidade de uma opinião”, dizia Mill, “é, em si mesma, uma questão de opinião tão aberta à discussão quanto a própria opinião”.
Camus viu o espectro mais sombrio da nossa época nesta pretensão de infalibilidade. Nossa tragédia política, dizia, começou quando alguém concluiu que era justo “matar um homem em nome de uma ideia”.
A ideia da morte útil e racional. Todos os regimes totalitários, sem exceção, de inspiração nazifascista ou comunista, lançaram mão deste utilitarismo grosseiro (essencialmente implausível nas sociedades abertas), sob muitas formas retóricas, para justificar a morte.
Ainda lembro da inscrição que li no campo de concentração de Dachau, perto de Munique, em que o regime justificava experiências médicas com judeus dizendo que era lógico matar um judeu num laboratório desde que isto pudesse salvar 300 jovens alemães no campo de batalha.
Nada com essa dramaticidade está em jogo em nosso mundo trivial. Mas resta a pretensão de que alguém tenha uma maquininha de calcular utilidade e possa decidir “sem emoção” se um desafeto político merece ou não sumir do mapa.
Era uma das coisas que Hayek chamaria de “arrogância fatal”. Um mal contra o qual o melhor remédio continua sendo o bom e velho ceticismo sobre a verdade e a razão.