sábado, 2 de junho de 2018

Cornetando na janela, FSP

No auge da paralisação dos caminhoneiros e da crise de abastecimento, a seleção brasileira deixou Teresópolis de helicóptero. Chegando ao Rio, seguiu para o Galeão sob forte escolta policial. Embarcou no avião fretado e tchau, tchau. Não se repetiu a praxe de outras Copas, um jogo de despedida com ingressos a preços populares —quem sabe no Maracanã, o estádio que um dia existiu.
Apesar da arrogância e frieza dos cartolas, ninguém se importou. Se a seleção não dá bola para a torcida, esta também não está morrendo de amores pelo time. O número de ruas enfeitadas com bandeiras ou pintadas e grafitadas em verde e amarelo é mínimo. Camisetas e bonés estão encalhados nas lojas (os comerciantes ainda não conseguiram zerar o estoque de 2014). A galera tem preferido cornetas e apitos, cuja estridência insuportável é mais apropriada a vaias. E o álbum de figurinhas só atraiu mesmo os marmanjos com saudade de brincar de bafo-bafo.
O desencanto não é para menos. São difíceis de esquecer os escândalos de corrupção na CBF e na Fifa, a ressaca moral com a realização da Copa no Brasil e, sobretudo, “aquela” derrota. Um grupo de torcedores, que não conseguiu ingresso para o único treino aberto na Granja Comary, cutucou a ferida: “Uh! É 7 a 1!”.
Crescem as comparações entre Tite e Sebastião Lazaroni (o treinador que fez com que a seleção não passasse das oitavas no Mundial de 1990). Exagero. Tite é um estrategista bem melhor, mas, como seu antecessor, peca no uso pastoral da linguagem. O “titês” é herdeiro do “lazaronês”, sim.
Nos comerciais de TV, dribles e gols foram substituídos por frases ditas aos berros pelo garoto-propaganda Tite e por comentaristas realmente técnicos como Anitta e Thiaguinho. Ao ouvir pela enésima vez que “nossa coragem e nossa preparação foram maiores”, a vontade é pegar a corneta (que não tenho) e correr até a janela.
Alvaro Costa e Silva
Trabalha como jornalista desde 1988. Já foi repórter, redator, editor, colunista.

A maldição do pré-sal, FSP


A descoberta do pré-sal se revelou uma catástrofe. A megalomania do maior plano de investimentos da história da indústria de petróleo é parte da crise atual. Afinal, o único resultado concreto desse plano foi a quase falência da Petrobras e a substituição de parte da sua produção em declínio, a um custo astronômico.
Em 2005, o lucro operacional da empresa foi de R$ 38,5 bilhões, em dinheiro da época. No ano passado, foi de R$ 35 bilhões, bem menor que seu custo de capital.
Plataforma da Petrobras em Itaguaí que explora a camada pré-sal, no Rio de Janeiro - AFP
A Petrobras é hoje uma empresa de tecnologia de dívidas profundas. São três os motivos pelos quais estaríamos melhor sem o pré-sal: ecológicos, éticos e de eficiência.
Durante anos, os relatórios da empresa comparavam a Petrobras a Exxon, Shell e BP, ignorando as suas verdadeiras referências: Sonangol (Angola), Pemex (México) e PDVSA (Venezuela).
Dentro da empresa, era comum achar que Exxon e Shell não teriam futuro, pois só a Petrobras teria reservas. O plano era "ser uma das cinco maiores empresas integradas de energia do mundo". Os devaneios não estavam somente lá.
Durante o governo Dilma Rousseff, estive com diversas empresas no Amazonas, e algumas estavam aumentando as frotas de caminhões, mesmo sem ver nisso uma grande oportunidade. Afinal, em 2012 o governo decidiu reduzir os juros da linha PSI- Finame, do BNDES, para módicos 2,5% ao ano para a compra de veículos pesados.
Vale lembrar que a inflação fechou o ano em 5,84%. Impossível resistir quando o governo suga recursos de toda a sociedade para "premiar" as empresas do seu setor. A exploração do pré-sal é um desastre ambiental, direto e indireto. Os péssimos controles internos e externos permitiram que recursos vultuosos fossem parar nas mãos de corruptos, dentro e fora da empresa.
Além disso, é fundamentalmente ineficiente, sem nenhum lucro econômico, e ainda diminuiu a competitividade relativa da indústria sucroalcooleira e outras energias renováveis.
Os investimentos no pré-sal e o novo-desenvolvimentismo resultaram num retrocesso institucional. Simplesmente não temos maturidade para desenhar políticas industriais decentes. O ideal seria a empresa fazer somente os investimentos básicos para explorar os poços muito viáveis e se planejar para em 30 a 40 anos não mais existir.
A transição para um modelo de sociedade sustentável não vai se fazer tendo como base a busca pelo aumento da indústria petrolífera. Não somos a Noruega, não temos capacidade de gerir eficientemente uma empresa pública com indicadores sólidos de governança e o equilíbrio entre objetivos públicos e privados.
O petróleo não é nosso, nem das multinacionais. Achar que o pré-sal iria alavancar a posição geopolítica do país chega a ser piada: "Olha lá, palhaços cucarachas corruptos querem pagar caro pra brincar no joguinho de Opep? Vamos rapar os otários".
Quando você é o pato na mesa, não adianta culpar os outros. A megalomania da e para a Petrobras limitou o crescimento de energias alternativas no país.
A princípio, haveria espaço para uma pujante empresa de petróleo enquanto o país faria sua transição para energias renováveis. Mas não temos governança escandinava.
Importar petróleo é bom --nos faz investir em mais eficiência. Ruim é ouvir o discurso arranhado de que o petróleo tem que ser nosso para preservar interesses nacionais.
Pior mesmo é subsidiar gasolina, um completo absurdo. Pelo visto, nossa incapacidade de aprender com erros passados continua intacta.
Rodrigo Zeidan
Economista, é professor da New York University Shangai, na China, e da Fundação Dom Cabral, no Brasil.

Totó é da família, FSP

Cunhados talvez não sejam parentes, mas o Totó decididamente o é. Está em julgamento no STJ uma ação na qual um ex-marido reivindica o direito de visitação à cadela da raça yorkshire que havia sido comprada pelo casal e acabou ficando com a mulher. Ele alega que a ex-companheira o impede de ver a cachorrinha, causando-lhe "intensa angústia".
O juiz de primeira instância negou o pedido, alegando que não se pode aplicar a animais regras previstas para a guarda de filhos. O TJ/SP reformou a sentença, valendo-se do princípio da analogia. No STJ, o julgamento estava em 2 a 1 em favor do ex-marido, quando foi interrompido por um pedido de vistas. 
Não há dúvida de que o Zeitgeist é pró-pet. Tudo caminha para que os animais de estimação se integrem cada vez mais, no plano afetivo e jurídico, à família. Mas há um limite para isso. Não creio que bichos poderão um dia ser titulares de direitos em sua plenitude, como querem os militantes mais entusiasmados.
Falta-lhes a capacidade de atuar como agentes morais. Se o seu cão foge e mata uma pessoa na rua, não é ele que irá a julgamento, mas você. É verdade que, na Idade Média, bichos que causavam acidentes eram levados ao banco dos réus. Não creio, porém, que isso possa ser considerado um avanço.
O fato é que, para gozar da plenitude de direitos, é preciso possuir, ao menos em potência, a capacidade de cumprir deveres, o que exige algum grau de consciência. Animais podem, contudo, ser pacientes morais, como crianças e outros humanos considerados incapazes.
Nesse campo, porém, estamos condenados a agir com incoerência. Queremos proteger nossos animais de estimação, mas não abrimos mão do hambúrguer nem da pesquisa médica e biotecnológica, que depende do sacrifício de cobaias. O critério é só emotivo, já que, do ponto de vista da biologia, Totó é um parente mais afastado dos humanos do que os ratinhos de laboratório.
Hélio Schwartsman
É bacharel em filosofia e jornalista. Na Folha, ocupou diferentes funções. É articulista e colunista.