“O mulato caiu pela primeira vez.”
A reportagem de
Audálio Dantas contava o desafio de um concurso de resistência que dava prêmio em dinheiro a quem se mantivesse em pé, pulando e dançando, enquanto seus competidores desabavam de sede, fome, exaustão.
Após dezenas de horas de atividade física sem parar, estugado de perto por um “leão de chácara” (com os cumprimentos de nossos patrocinadores), a pessoa podia cair uma, duas vezes. Na terceira, era eliminada.
Audálio começou sua vida de jornalista nesta Folha, em 1954, primeiro como revelador de filmes fotográficos, depois como fotógrafo, enfim como repórter.
Agora estava em O Cruzeiro, a primeira grande revista nacional do Brasil até a metade de 1960. Depois viria Realidade, seguida por Veja.
Com a decadência de O Cruzeiro, Audálio foi chamado para Realidade e outras revistas da Editora Abril.
Enquanto pôde ser apenas jornalista, foi recrutado —e bem pago— para estar nas nossas mais importantes redações.
Seus textos precisos e despojados, expostos com destaque, mostraram desde o início que ali estava um jornalista em que se podia distinguir alguns aspectos do que a profissão tem de melhor: indignação contra a injustiça, distância do poder e dos poderosos, compromisso fechado com o fraco, o desvalido, a minoria.
A DITADURA
Década de 70, o Brasil diante de um governo opressor: censura, prisões em massa, tortura. Os jornalistas em São Paulo precisavam contar com o sindicato, então nas mãos de um grupo de direita havia muitos anos.
Tinham de compor uma chapa de oposição da mais alta qualidade —humana e profissional— para estimular os colegas a votar contra a diretoria, que se alinhava com os generais. Como um rastilho de pólvora, o nome de Audálio passava de boca em boca.
“O Audálio?! Você acha que um profissional como ele, com a carreira em ascensão e filhos pra criar, vai deixar tudo isso para brigar pelos outros? Não vai mesmo...”
Audálio montou uma chapa de estrategistas e batalhadores —estes eram seus “pés de boi”, dizia—, ganhou a eleição e logo se viu diante do desafio de dizer ao mundo que Vladimir Herzog tinha sido morto numa dependência do Exército Brasileiro.
Desde o primeiro minuto —vindo da clarividência de Fernando Pacheco Jordão, um dos estrategistas da diretoria— o sindicato, em cuidadosas notas à imprensa, dizia que não, não houvera suicídio: Herzog tinha sido assassinado no DOI-Codi.
O comandante do Segundo Exército quis Audálio à sua frente, mandou buscá-lo.
Diante do general, serenamente, reafirmou o conteúdo das notas. Não foi preso, mas em compensação o sobressalto entre os jornalistas aumentou. A toda hora vinha um boato de que iam invadir o sindicato.
Audálio dormia cada noite num lugar, mas passou a se sentir mais seguro com o apoio que chegava de outros sindicatos, de políticos importantes, de gente da universidade e de organizações civis e religiosas, daqui e do estrangeiro. As assembleias do sindicato tinham casa cheia, a maioria de apoiadores de origens as mais diversas.
QUE É QUE ELE VAI DIZER NA MISSA?
Na missa ecumênica na Catedral da Sé —oficiada por dom Paulo Evaristo, o pastor evangélico Jaime Wright e o rabino Henry Sobel— estava previsto que Audálio falaria.
Era visível na igreja e em seu entorno a presença de agentes que mal se preocupavam em se disfarçar.
Preocupação geral: a catedral abarrotada não poderia levar Audálio a uma empolgação que o fizesse dizer coisas que irritassem além da conta os militares?
Todos viram com ansiedade quando aquele nordestino miúdo de Tanque D’Arca, no interior de Alagoas, caminhou para o púlpito. E começou com voz forte:
“Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, se é mentira, se é verdade tanto horror perante os céus!”
E por aí foi. Quando souberam do que se tratava —um poema de “Navio Negreiro”, de Castro Alves—, os generais não tinham o que fazer.
O cardeal dom Hélder Câmara, um dos mais perseguidos pela ditadura, veio do Recife para a missa. A igreja toda ficou na expectativa de que ele aproveitasse o cenário para imprecar contra seus algozes.
Dom Hélder ficou o tempo todo de pé, ao lado do altar, mudo e calado. Aquele silêncio ecoou por todo o Brasil.
Hoje se sabe que a reação ao assassinato de Herzog foi o primeiro movimento aberto da sociedade brasileira contra a ditadura e pela volta da democracia no Brasil.
A sucessão de fatos fez de Audálio uma figura nacional. Convidado por Ulysses Guimarães, um dos inspiradores das Diretas-Já, aceitou candidatar-se a deputado federal.
Foi parlamentar sério, presente, atuante, respeitado. Ao fim do mandato, não tinha se envolvido em nenhuma negociata, ao contrário: saiu de lá com dívida.
As pessoas pensavam que, por ser deputado, podia tudo, então lhe pediam coisas, propunham compromissos, e ele não sabia dizer não.
O MULATO CAIU PELA SEGUNDA VEZ
Na reportagem sobre o concurso de resistência física no Rio, Audálio acompanhou os passos de um homem desesperado, um mulato, mas seguiu também o desgaste e a humilhação de outros participantes, mulatos ou não, daquele show de horrores.
Cada um tinha sua história de injustiça, de exclusão, de desencanto, de miséria. No salão os dançadores caíam, um a um.
Após deixar a Câmara Federal, Audálio foi atrás de trabalho na grande imprensa, mas logo verificou que as empresas de comunicação não queriam mais abrigar aquele que, com sindicato ou não, falava tão mal dos patrões.
Tinha filhos pra criar —agora eram quatro, um menino, três meninas—, foi trabalhar onde dava, firmas de propaganda, edição de revistas corporativas, assessorias.
Sempre com ativa participação nas entidades e movimentos de defesa do trabalho e dos direitos humanos e civis.
Revela sua face de escritor com um livro sobre os bastidores da imolação de Herzog, honrado com o Prêmio Jabuti. Conta, também em livro, histórias da infância de Lula, de seu conterrâneo Graciliano Ramos, de artistas e escritores.
O MULATO CAI PELA TERCEIRA VEZ
O personagem da matéria de Audálio sobre o concurso de resistência, após cair duas vezes e vacilar na sala a ponto de pensarem que ele estivesse querendo dormir em pé —e pulando—, levado ao esgotamento físico, dificuldades na respiração e confusão mental, desaba no chão. Vem sobre ele um “supervisor”:
“Terceira queda, desqualificado!! Pode levantar e ir embora!”
O mulato não se levantou. Alguém gritou lá atrás: “Uma ambulância. É preciso uma ambulância, depressa!”
A reportagem de O Cruzeiro teve grande repercussão e o nefando concurso perdeu respeito para sempre.
Audálio estava sempre alerta contra os espertinhos e espertalhões que vivem de armadilhas para enganar o povo e se aproveitar da sua fraqueza e vulnerabilidade.
Talvez seja uma unanimidade entre os profissionais: ele era o símbolo do jornalista naquilo que ele tem de melhor. Um paradigma.
(Audálio vinha há tempos batalhando contra um câncer, com brio e coragem. Submetia-se com paciência ao tratamento, sempre otimista e acreditando que devia resistir porque, a qualquer momento, surgiria um remédio para curá-lo.)
AUDÁLIO DANTAS (1929-2018)
Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de SP nos anos 70. No cargo,
contestou a versão oficial da ditadura e denunciou que jornalista Vladimir Herzog havia sido torturado e morto no DOI-Codi, em 1975. Ajudou a revelar a escritora Carolina Maria de Jesus. Morreu de câncer na quarta (30)