sexta-feira, 1 de junho de 2018

PT paga preço alto ao manter Lula como candidato fantasma, FSP

O PT paga um preço alto ao carregar um candidato fantasma na etapa pré-eleitoral. Ao insistir na improvável participação de Lula na disputa, o partido afasta potenciais aliados, confunde eleitores e reduz seu peso na cena política cotidiana.
A percepção consolidada de que o ex-presidente terá seu registro negado torna absurdas as condições de negociação entre o PT e outras siglas.
Em uma reunião há três semanas, um dirigente do PSB tentou arrancar dos petistas o nome do substituto de Lula —já que a definição terá impacto sobre eleições locais. Um líder do PT respondeu o de sempre: o ex-presidente será candidato.
Ao ouvir o discurso, o socialista se irritou. Disse que era impossível fazer campanha para um político que não chegará às urnas, e que não daria um cheque em branco aos petistas em troca de apoio em seu estado.
O prejuízo dessa estratégia não convence o PT a apresentar outro candidato porque, segundo cálculos da sigla, o estrago é inevitável.
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, explicou essa lógica de maneira pragmática: “Nossa base não vai ver automaticamente se aquela pessoa [outro candidato] vai conseguir efetivamente substituir o Lula”.
A tática envolve uma contradição em si. Os petistas querem manter viva a candidatura de Lula para evitar a desmobilização de seu eleitorado, mas a falta de um rosto presidenciável alternativo fragiliza a sigla.
Sem Lula, o PT perde fôlego em episódios como a greve dos caminhoneiros. Outros candidatos apareceram com suas ideias sobre a crise. O ex-presidente teve que se contentar com uma declaração sem sal de deputados que o visitaram na prisão.

Em 1º de junho de 2017, a Polícia Federal intimou pela primeira vez o coronel João Baptista Lima Filho, amigo e faz-tudo de Michel Temer. Há um ano, ele apresenta atestados médicos e se recusa a explicar suas relações empresariais e com o presidente. Os investigadores acreditam que ele tem muito o que falar.


    Bruno Boghossian
    Aborda temas da política nacional. Jornalista já integrou a equipe do "Painel" e foi repórter de política e economia.

    Audálio Dantas era repórter aliado dos fracos, por FSP

    José Hamilton Ribeiro
    SÃO PAULO
    “O mulato caiu pela primeira vez.”
    A reportagem de Audálio Dantas contava o desafio de um concurso de resistência que dava prêmio em dinheiro a quem se mantivesse em pé, pulando e dançando, enquanto seus competidores desabavam de sede, fome, exaustão.
    Após dezenas de horas de atividade física sem parar, estugado de perto por um “leão de chácara” (com os cumprimentos de nossos patrocinadores), a pessoa podia cair uma, duas vezes. Na terceira, era eliminada.
    Audálio começou sua vida de jornalista nesta Folha, em 1954, primeiro como revelador de filmes fotográficos, depois como fotógrafo, enfim como repórter.

    O jornalista Audálio Dantas, em foto de agosto de 2017
    O jornalista Audálio Dantas, em foto de agosto de 2017 - Marcus Leoni - 15.ago.2017/Folhapress

    Agora estava em O Cruzeiro, a primeira grande revista nacional do Brasil até a metade de 1960. Depois viria Realidade, seguida por Veja. 
    Com a decadência de O Cruzeiro, Audálio foi chamado para Realidade e outras revistas da Editora Abril.
    Enquanto pôde ser apenas jornalista, foi recrutado —e bem pago— para estar nas nossas mais importantes redações.
    Seus textos precisos e despojados, expostos com destaque, mostraram desde o início que ali estava um jornalista em que se podia distinguir alguns aspectos do que a profissão tem de melhor: indignação contra a injustiça, distância do poder e dos poderosos, compromisso fechado com o fraco, o desvalido, a minoria.

    A DITADURA

    Década de 70, o Brasil diante de um governo opressor: censura, prisões em massa, tortura. Os jornalistas em São Paulo precisavam contar com o sindicato, então nas mãos de um grupo de direita havia muitos anos. 
    Tinham de compor uma chapa de oposição da mais alta qualidade —humana e profissional— para estimular os colegas a votar contra a diretoria, que se alinhava com os generais. Como um rastilho de pólvora, o nome de Audálio passava de boca em boca.
    “O Audálio?! Você acha que um profissional como ele, com a carreira em ascensão e filhos pra criar, vai deixar tudo isso para brigar pelos outros? Não vai mesmo...”
    Audálio montou uma chapa de estrategistas e batalhadores —estes eram seus “pés de boi”, dizia—, ganhou a eleição e logo se viu diante do desafio de dizer ao mundo que Vladimir Herzog tinha sido morto numa dependência do Exército Brasileiro. 
    Desde o primeiro minuto —vindo da clarividência de Fernando Pacheco Jordão, um dos estrategistas da diretoria— o sindicato, em cuidadosas notas à imprensa, dizia que não, não houvera suicídio: Herzog tinha sido assassinado no DOI-Codi.
    O comandante do Segundo Exército quis Audálio à sua frente, mandou buscá-lo. 
    Diante do general, serenamente, reafirmou o conteúdo das notas. Não foi preso, mas em compensação o sobressalto entre os jornalistas aumentou. A toda hora vinha um boato de que iam invadir o sindicato. 
    Audálio dormia cada noite num lugar, mas passou a se sentir mais seguro com o apoio que chegava de outros sindicatos, de políticos importantes, de gente da universidade e de organizações civis e religiosas, daqui e do estrangeiro. As assembleias do sindicato tinham casa cheia, a maioria de apoiadores de origens as mais diversas.

    QUE É QUE ELE VAI DIZER NA MISSA?

    Na missa ecumênica na Catedral da Sé —oficiada por dom Paulo Evaristo, o pastor evangélico Jaime Wright e o rabino Henry Sobel— estava previsto que Audálio falaria.
    Era visível na igreja e em seu entorno a presença de agentes que mal se preocupavam em se disfarçar.
    Preocupação geral: a catedral abarrotada não poderia levar Audálio a uma empolgação que o fizesse dizer coisas que irritassem além da conta os militares?
    Todos viram com ansiedade quando aquele nordestino miúdo de Tanque D’Arca, no interior de Alagoas, caminhou para o púlpito. E começou com voz forte:
    “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, se é mentira, se é verdade tanto horror perante os céus!”
    E por aí foi. Quando souberam do que se tratava —um poema de “Navio Negreiro”, de Castro Alves—, os generais não tinham o que fazer.
    O cardeal dom Hélder Câmara, um dos mais perseguidos pela ditadura, veio do Recife para a missa. A igreja toda ficou na expectativa de que ele aproveitasse o cenário para imprecar contra seus algozes.
    Dom Hélder ficou o tempo todo de pé, ao lado do altar, mudo e calado. Aquele silêncio ecoou por todo o Brasil.
    Hoje se sabe que a reação ao assassinato de Herzog foi o primeiro movimento aberto da sociedade brasileira contra a ditadura e pela volta da democracia no Brasil. 
    A sucessão de fatos fez de Audálio uma figura nacional. Convidado por Ulysses Guimarães, um dos inspiradores das Diretas-Já, aceitou candidatar-se a deputado federal. 
    Foi parlamentar sério, presente, atuante, respeitado. Ao fim do mandato, não tinha se envolvido em nenhuma negociata, ao contrário: saiu de lá com dívida.
    As pessoas pensavam que, por ser deputado, podia tudo, então lhe pediam coisas, propunham compromissos, e ele não sabia dizer não.

    O MULATO CAIU PELA SEGUNDA VEZ

    Na reportagem sobre o concurso de resistência física no Rio, Audálio acompanhou os passos de um homem desesperado, um mulato, mas seguiu também o desgaste e a humilhação de outros participantes, mulatos ou não, daquele show de horrores. 
    Cada um tinha sua história de injustiça, de exclusão, de desencanto, de miséria. No salão os dançadores caíam, um a um.
    Após deixar a Câmara Federal, Audálio foi atrás de trabalho na grande imprensa, mas logo verificou que as empresas de comunicação não queriam mais abrigar aquele que, com sindicato ou não, falava tão mal dos patrões.
    Tinha filhos pra criar —agora eram quatro, um menino, três meninas—, foi trabalhar onde dava, firmas de propaganda, edição de revistas corporativas, assessorias.
    Sempre com ativa participação nas entidades e movimentos de defesa do trabalho e dos direitos humanos e civis. 
    Revela sua face de escritor com um livro sobre os bastidores da imolação de Herzog, honrado com o Prêmio Jabuti. Conta, também em livro, histórias da infância de Lula, de seu conterrâneo Graciliano Ramos, de artistas e escritores.

    O MULATO CAI PELA TERCEIRA VEZ

    O personagem da matéria de Audálio sobre o concurso de resistência, após cair duas vezes e vacilar na sala a ponto de pensarem que ele estivesse querendo dormir em pé —e pulando—, levado ao esgotamento físico, dificuldades na respiração e confusão mental, desaba no chão. Vem sobre ele um “supervisor”:
    “Terceira queda, desqualificado!! Pode levantar e ir embora!”
    O mulato não se levantou. Alguém gritou lá atrás: “Uma ambulância. É preciso uma ambulância, depressa!”
    A reportagem de O Cruzeiro teve grande repercussão e o nefando concurso perdeu respeito para sempre. 
    Audálio estava sempre alerta contra os espertinhos e espertalhões que vivem de armadilhas para enganar o povo e se aproveitar da sua fraqueza e vulnerabilidade.
    Talvez seja uma unanimidade entre os profissionais: ele era o símbolo do jornalista naquilo que ele tem de melhor. Um paradigma.
    (Audálio vinha há tempos batalhando contra um câncer, com brio e coragem. Submetia-se com paciência ao tratamento, sempre otimista e acreditando que devia resistir porque, a qualquer momento, surgiria um remédio para curá-lo.)

    AUDÁLIO DANTAS (1929-2018)

    Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de SP nos anos 70. No cargo, contestou a versão oficial da ditadura e denunciou que jornalista Vladimir Herzog havia sido torturado e morto no DOI-Codi, em 1975. Ajudou a revelar a escritora Carolina Maria de Jesus. Morreu de câncer na quarta (30)

    'Ética é estarmos à altura do que nos acontece', FSP

    O nome é Mamoudou Gassama. Em Paris, o imigrante do Mali viu um bebê pendurado na varanda. Escalou quatro andares e salvou a criança. O presidente Emmanuel Macron, depois de um encontro pessoal com o herói, garantiu-lhe a nacionalidade. É justo.
     
    Justo e inquietante: sempre gostei dessas histórias de coragem física. Uma leitura freudiana diria que só admiramos aquilo que tememos não possuir. Talvez seja verdade. Embora, nessas matérias, Aristóteles seja melhor que Freud: a coragem física não esgota todos os tipos de coragem.
     
    A coragem moral, por exemplo, pode ser mais difícil do que a coragem física. Ou, como diz um grafite numa estação de metrô em Lisboa, citando o filósofo Gilles Deleuze: “Ética é estarmos à altura do que nos acontece”. Até ver, tenho estado à altura do que me acontece. Acho eu. Ou então iludo-me eu.
    Mas divago. Fiquemos pela coragem física. E fiquemos por Aristóteles. Na sua “Ética a Nicômaco”, o filósofo avisava: não confundamos a coragem com a temeridade. Coragem é a forma nobre de respondermos ao medo —e, ponto importante, à nossa própria covardia.
     
    Se Mamoudou Gassama fosse desprovido de racionalidade, o seu ato não teria o mesmo valor. O herói sente medo; mas age contra o medo para cumprir um propósito maior.
     
    Exatamente como os três amigos americanos —Alek Skarlatos, Anthony Sadler, Spencer Stone— que imobilizaram um terrorista no trem de Amsterdã para Paris, correndo perigo de vida. A história foi contada por Clint Eastwood em “15h17 - Trem Para Paris”.
     
    Não é das melhores colheitas de Eastwood, admito. E, em termos dramáticos, também admito que a opção de Clint de usar os próprios amigos como atores do filme retirou grandeza artística à ação.
     
    Mas entendo por que motivo o diretor não resistiu à história que espantou o mundo em 2015. A carreira de Clint como diretor (e também como ator) resume-se na nobreza do individualismo. Essa é a sua filosofia política: uma desconfiança pétrea face a grandes esquemas de transformação ou redenção das sociedades; uma fé, nem sempre pacífica ou recompensada, na decência comum do homem comum.
     
    Como esquecer os seus “justiceiros solitários” —de Dirty Harry a Bill Munny de “Os Imperdoáveis”? Como esquecer o misericordioso Frankie Dunn de “Sonhos Vencidos”? Como esquecer, em suma, o mártir Walt Kowalski de “Grand Torino” (essa, sim, a última obra-prima de Clint Eastwood)?
     
    Em “15h17 - Trem Para Paris”, voltamos a território conhecido: rapazes da Califórnia, viajando pela Europa, que no momento certo (ou errado, diriam os covardes) se encontram face a face com o dilema de uma vida. E que decidem agir, travando o mal com as próprias mãos. Razões?
     
    O filme apresenta algumas, filmando a biografia dos três desde a infância. Uma educação religiosa explica parte do caráter. Uma certa admiração pelas virtudes militares explica outra parte. Engraçado: escrevo “educação religiosa” e “virtudes militares” —e sinto que pisei nos calos da sensibilidade pós-moderna, tão cheia de cinismo e covardia.
     
    Clint Eastwood nunca foi indiferente a essa dimensão antiquada (e ofensiva) da “masculinidade” (sinto que pisei mais um calo). Mas o ponto central do filme, e dos filmes de Clint, é que essas virtudes “viris” (mais um calo?) não são adereços míticos de figuras míticas, que habitam as odisseias de Homero ou os filmes de Hollywood.
     
    Elas existem no mais anônimo ser humano —gente como Mamoudou Gassama ou os três amigos americanos; gente que suplanta o medo por sentir dentro de si o apelo da rectidão.
     
    Nesse sentido, entende-se a escolha do diretor de usar os próprios rapazes como atores. A mensagem de Clint é simples: poderia ser você. E, se fosse você, o que faria?
     
    Não sei. Ninguém sabe. Mas, se Aristóteles estava certo, a coragem não é uma virtude consumada. É algo que cultivamos, praticamos, treinamos —​ao longo de uma vida.
     
    Como se fossemos atletas da alma, preparando continuamente os músculos para o que der e vier. ​