terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Seca e recessão derrubam economia do Nordeste após anos de avanço, OESP


Em 2015 e 2016, PIB da região recuou, em média, 4,3% ao ano – o pior resultado no País; dependente de transferências governamentais e programas sociais, que recuaram com a crise, região tem arcado ainda com prejuízos da seca
Renée Pereira
09 Janeiro 2017 | 05h00
Uma perversa combinação entre crise econômica e problemas climáticos tem castigado o Nordeste do Brasil. A região, que nos últimos anos teve importantes avanços sociais, agora começa a perder parte dessas conquistas com o enfraquecimento da economia e perda do poder aquisitivo da população.
Levantamento feito pela Tendências Consultoria Integrada mostra que, em 2015 e 2016, o Produto Interno Bruto (PIB) da região teve recuo médio de 4,3% ao ano – o pior resultado entre todas as regiões do País. Com o desemprego em alta, a renda familiar encolheu 2% ao ano e, num efeito cascata, fez as vendas no comércio despencarem quase 20% nos dois anos.
Piores resultados
Crescimento do Nordeste
Parte desse resultado negativo é reflexo da pior seca dos últimos 100 anos. Entre 2012 e 2015, o Nordeste teve prejuízos de R$ 104 bilhões por causa da falta d’água. Desse total, R$ 74,6 bilhões foram na agricultura, R$ 20,6 bilhões na pecuária e R$ 1 bilhão na indústria, além de perdas dos próprios municípios com programas de ajuda. 
O fraco desempenho da região também tem origem em questões estruturais. O Nordeste é altamente dependente das transferências governamentais, que recuaram com a crise fiscal brasileira. Com a queda na arrecadação nacional, Estados e municípios passaram a receber menos dinheiro para investir e pagar despesas.
Aposentadoria. Outra característica é que, até 2015, quase 24% da renda familiar vinha de aposentadorias, pensões ou Bolsa Família. “Durante vários anos esses benefícios cresceram mais que a renda do trabalho e foram importantes motores de consumo do Nordeste”, diz o economista da Tendências, Adriano Pitoli.
Essa política – adotada na era Lula e Dilma Rousseff – ajudou a economia local a avançar acima da média nacional. De 2006 a 2014, o PIB da região teve crescimento médio de 3,9% ao ano, enquanto a média nacional foi de 3,5%. A renda familiar subiu 6,9%, impulsionando o comércio a uma taxa anual de 8,8%. 
Mas essa fonte de crescimento parece ter se esgotado, e não há perspectiva de que volte no mesmo ritmo e potência dos últimos anos. Entre 2015 e 2016, a renda do Bolsa Família, por exemplo, teve queda média de 5,7% ao ano, segundo a Tendências. No período 2017-2021 deve crescer apenas 0,3% ao ano.
Os avanços fizeram muitos economistas acreditarem que, em 50 anos, o Nordeste conseguiria se aproximar do PIB per capita nacional – o produto das riquezas totais produzidas pela região dividido pela quantidade de habitantes. Hoje essas estimativas não se aplicam mais. Segundo as previsões da Tendências, no ano passado o indicador recuou ao nível de 2009.
“O Nordeste teve ganhos de renda baseados em crédito e em programas sociais. Só que não fizemos nada para promover os avanços na produtividade para que essas conquistas fossem perenes”, afirma o pesquisador José Ronaldo de Castro Souza Júnior, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo ele, não se investiu em educação e saneamento para melhorar e desenvolver a região. “O resultado é que se tem uma convergência no curto prazo, mas depois volta o que era antes.”
O economista Jorge Jatobá, diretor da consultoria Ceplan, de Pernambuco, afirma ainda que a região foi fortemente prejudicada pela paralisia de grandes empreendimentos. “Vivemos uma conjunção de problemas. Além de depender muito das transferências estaduais e federais, projetos que vinham sendo construídos na região tiveram as obras reduzidas, paradas ou canceladas.” 
Segundo ele, entre 2007 e 2014, o Nordeste tinha R$ 104 bilhões de investimentos sendo tocados. Isso inclui a ferrovia Transnordestina, a transposição do Rio São Francisco e as refinarias da Petrobrás, atingidas pela Operação Lava Jato. /COLABOROU CLEIDE SILVA
Cleide Silva (texto) e Hélvio Romero(fotos) / ENVIADOS ESPECIAIS A PERNAMBUCO E AO PIAUÍ
09 Janeiro 2017 | 05h00
Valdecir João da Silva, de 53 anos, conta os cadáveres do seu pequeno rebanho que não resistiu à fome, à falta de água e às doenças causadas pela desnutrição. Em uma área afastada da pequena casa onde vive com a família, ele juntou 12 animais mortos ao longo dos últimos meses. De alguns, restam os ossos. De outros, mais recentes, os corpos inchados. “Morreram de fome”, resume ele, que prefere deixá-los aos urubus a enterrá-los. Ele tenta salvar os 20 animais que restam com mandacaru, a planta símbolo do Nordeste. “Ração não dá para comprar, pois está muito cara. O saco de milho que custava R$ 18 há dois anos hoje sai por R$ 65.”
No sertão de Petrolina, quinta maior cidade de Pernambuco, não choveu por 11 meses. Em meados de dezembro, caiu uma chuva forte, mas logo parou. O receio dos sertanejos do semiárido é de que se repita o ocorrido em janeiro passado, quando a chuva veio forte, “sangrou” açudes, mas durou só duas semanas.
“Plantei 60 quilos de milho e de feijão, mas não choveu mais e perdi tudo. Não deu nem palha”, diz Josilane Rodrigues, de 25 anos, enquanto expõe 11 ovelhas em uma feira em Dormentes, a 130 km de Petrolina. Quer vendê-las, mesmo a preço baixo, por não ter como alimentá-las.
“Vou vender a qualquer preço porque não quero voltar com eles”, afirma Francisco Agostinho Rodrigues, de 64 anos, que levou à feira 23 de seus 60 animais. “A gente vende algumas para dar de comer às outras”. A feira semanal de Dormentes reúne, em média, 3,6 mil animais e atrai compradores da região e de outros Estados. Em tempos bons, tudo é vendido. Agora, em razão da crise e da seca, o número de animais expostos caiu à metade e muitos voltam para casa por falta de interessados, diz João Batista Coelho, da Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária.
Após cinco anos seguidos de volume de chuvas abaixo da média histórica, a seca do semiárido já é considerada a maior do século. A região inclui Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e o norte de Minas Gerais e conta com cerca de 23 milhões de habitantes. 
Água. Grandes reservatórios do Nordeste – com potencial de armazenar mais de 10 bilhões de litros de água – operam, em média, com 16, 3% da capacidade, porcentual que era de 46,3% há cinco anos. Dos 533 reservatórios da região monitorados pela Agência Nacional de Águas (ANA), 142 estão secos.
Segundo Raul Fritz, da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), “não se via seca tão severa para um período consecutivo desde 1910”, quando dados sobre as chuvas passaram a ser coletados. O Ceará é o Estado em pior situação. Seus reservatórios têm apenas 7% da capacidade armazenada. Nos últimos cinco anos, choveu em média 516 milímetros no território, enquanto a média mínima é de 600 milímetros. “E o Ceará é o retrato do que ocorre nos demais Estados”, diz Fritz.
Vários rios e açudes também secaram. Muitos moradores, inclusive em grandes cidades, só têm acesso à água fornecida por caminhões-pipa bancados pelos governos federal e estaduais.
De 2012 a 2015, o Nordeste registrou prejuízos de R$ 104 bilhões com a seca. O valor equivale a quase 70% das perdas em razão desse fenômeno em todo o Brasil, segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM). Os valores de 2016 ainda não foram contabilizados.
Em Pernambuco, onde boa parte dos 185 municípios está em situação de emergência, a perda chega a R$ 1,5 bilhão só na pecuária. O rebanho bovino, formado por 2,5 milhões de cabeças em 2011, diminuiu em 554 mil cabeças no ano passado.
Ainda que caprinos e ovinos tenham sofrido com a estiagem, como os do criador Silva, o rebanho cresceu por ter substituído o gado, que é menos resistente à seca. O número de cabras, bodes e cabritos passou de 1,9 milhão para 2,4 milhões em quatro anos. O de ovinos saltou de 1,8 milhão para 2,4 milhões.

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Programas sociais reduzem migração

Engenheiro agrônomo da ONG Caatinga conta que, nos últimos 15 anos, não se vê mais um grande número de pessoas indo para as capitais ou outros Estados, nem mercados com alimentos sendo saqueados ou crianças morrendo de fome
Cleide Silva
09 Janeiro 2017 | 05h00
A longa estiagem deixa os tradicionais traços de terra arrasada, plantação cinza, como se tivesse sido queimada, e animais magros, mas a situação da população é diferente de anos atrás, quando a seca expulsava os habitantes do sertão. Hoje as pessoas permanecem no Nordeste porque são atendidas por programas sociais, como Bolsa Família, Bolsa Estiagem, aposentadoria rural, instalação de cisternas e Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
“Nos últimos 15 anos não se vê mais um grande número de pessoas indo para as capitais ou outros Estados, nem mercados e caminhões com alimentos sendo saqueados ou crianças morrendo de fome”, diz o engenheiro agrônomo Giovanne Xenofonte, da ONG Caatinga, que mantém projetos de agroecologia em Araripe, área formada por dez cidades do interior de Pernambuco.
Na seca de 1979 a 1983, por exemplo, 3,5 milhões de pessoas morreram por subnutrição. Em 1915 e 1932, os governos chegaram a criar “campos de concentração” para evitar que populações famintas chegassem às capitais.
Com os R$ 600 que recebe do Bolsa Família, o casal Manoel Granja de Souza, de 49 anos, e Maria Elisie, de 39 anos, cuida de oito filhos com idades entre 2 e 21 anos na área rural de Ouricuri (PE). Só o mais velho faz bicos ajudando um vizinho no corte de mandacaru.
Após perder seis vacas, “cinco por fome e uma porque comeu plástico”, conforme explica Souza, ele vendeu as quatro que restaram, “antes que também morressem”. Agora cria cinco galinhas. “Sem o Bolsa Família estaríamos perdidos; teria de pedir ajuda nas ruas da cidade”, diz Elisie.
O presidente da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos, a Funceme, Eduardo Martins, diz que programas sociais evitam a migração e cita a instalação de mais de 1 milhão de cisternas no semiárido para captar água da chuva. Elas são abastecidas por caminhões-pipa pagos pelo governo. Mas algumas famílias reclamam que ficam até três meses sem água. “A política do carro pipa é necessária, mas reforça a indústria da seca”, diz Xenofonte. Há um comércio da água – retirada do rio São Francisco e de outras fontes –, e os donos de caminhões cobram de R$ 65 a R$ 130 por um carregamento.
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Cleide Silva
09 Janeiro 2017 | 05h00
Na região rural de Acauã (PI), primeira cidade a ser beneficiada pelo programa Fome Zero junto com Guaribas, em 2003, Hortêncio Francisco Rodrigues, de 78 anos, conta que, até 2012, tinha 20 cabeças de gado, mas hoje tem quatro: “Praticamente mandei colocar no caminhão e levar; vendi baratinho, pois ninguém queria.”
Agora se dedica à criação de 150 ovelhas e cabras, que são mais resistentes e comem plantas da caatinga, como mandacaru, angaroba e palma, que também começam a escassear em algumas regiões do Nordeste.
Rodrigues ficou contente com a chuva de dezembro, mas ressalta que “chuvinha pouca não conta”. Desde então, o sol voltou a ser “o mais quente da vida”, como define ele. 
De sorriso fácil, Rodrigues afirma que o valor recebido da aposentadoria é que tem ajudado a manter parte das despesas da casa, principalmente com os remédios da esposa Luzia, de 79 anos. Com seis filhos (dos quais dois já morreram), um número de netos que perdeu a conta e 31 bisnetos, ele diz que parte da família deixou o sertão. Alguns migraram para São Paulo, “à caça de emprego”. Apesar das secas constantes, umas mais duras, outras menos, não pensa em ir embora. “Nasci aqui e só saio envelopado”, brinca.
O vizinho José Teixeira de Macedo, de 64 anos, já viveu da plantação de algodão nos anos 80, mas perdeu tudo por causa da praga de bicudos. Participou de frentes de trabalho na grande seca de 1983 e agora cria ovinos e planta milho e feijão quando chove. Diz que, sem a aposentadoria, tudo estaria muito mais difícil. Ele e um dos filhos cuidam da roça e também não pensam em abandonar o sertão. Já a neta, Samara, de 16 anos, pretende mudar-se para uma cidade maior e estudar Administração. “Não vou morar aqui; vejo o sofrimento dos avós e dos pais e não quero isso”.

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Cleide Silva
09 Janeiro 2017 | 05h00
O agrônomo e criador de caprinos e ovinos em Acauã (PI), Cândido Roberto de Araújo, de 49 anos, comprou um rebanho com 122 animais por R$ 50 cada. Em períodos normais, sairia por cerca de R$ 200, calcula ele. “Estavam todos magros e tive de engordá-los para revender para o abate”.
Na região predomina a criação de animais para abate ou produção de leite. Araújo reclama da falta de um programa governamental voltado à atividade. O que tem disponível é o Seguro Safra, empréstimo subsidiado para quem perde a produção agrícola. “Precisamos é de um Seguro Bode”, diz, referindo-se ao animal cuja carne está entre as mais consumidas pela população local.
Antonio Felipe de Souza, de 60 anos, tem 80 cabeças de gado leiteiro. Após perder 20 animais, em 2012 e 2013, passou a plantar capim, irrigado com água de um poço que construiu com verba do Bolsa Estiagem. Seu irmão Norberto não obteve o crédito e, de 100 vacas, perdeu 80. Junto com familiares, Souza produz doce de leite e peta (biscoito de polvilho) e vende na região. “Dá para sobreviver”, diz.
Segundo a Cooperativa de Produtores de Afrânio (PE), a produção de leite caiu de 11 mil litros por dia em 2012 para 3,4 mil litros. O preço também caiu. “O que a gente vende não dá nem para as despesas”, diz Fortunato Rodrigues, de 74 anos. Vender o animal não é solução. “O preço da arroba está lá embaixo e quem vende não consegue repor o gado”. 

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Cleide Silva
09 Janeiro 2017 | 05h00
Não depender de uma única especialização e diversificar atividades para poder enfrentar com menos sofrimento o período de estiagem é a estratégia adotada pelo produtor Adão de Jesus Oliveira, de 40 anos. Ele, a esposa Fabiana, de 32 anos, e os filhos, de 12 e 8 anos, estão entre as 28 mil famílias da região do Araripe atendidas pelo projeto Caatinga, que tem parcerias com entidades internacionais e o Governo Federal em trabalhos voltados à agroecologia para pequenos produtores.
Além de criar 28 caprinos, vacas e éguas na área rural de Ouricuri (PE), Oliveira cultiva hortaliças, como coentro, e frutas – umbu e acerola, das quais faz poupa, congela e vende ao longo do ano. Planta palmas para dar aos animais e tem atividade de apicultura, embora nos últimos dois anos a falta de floradas prejudicou a produção de mel. No início do ano passado, também plantou milho e feijão e perdeu tudo. Em todo o Estado de Pernambuco, a produção média anual de milho de 2012 a 2015 foi de 31,2 mil toneladas, queda de 83% em relação aos quatro anos anteriores.
Para tentar evitar mais perdas, Oliveira fez um poço de 52 metros com bomba submersa, e gastou R$ 6 mil. “Foi uma poupança de muitos anos”, diz. “Foi um investimento arriscado, mas nesse período de seca e crise não passamos apertados”. A esposa ajuda nos gastos da casa com a confecção de sabonetes de aroeira e artesanatos.

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Barragem de Ouricuri está seca há dois anos

Dos seus dez filhos, quatro deixaram o sertão e foram viver em grandes cidades, como São Paulo. 'Eu fiquei aqui porque dou valor a esse lugar', diz
Cleide Silva
09 Janeiro 2017 | 05h00
Sem plantar feijão e milho depois de ter perdido as últimas safras em razão da seca, o produtor Benedito Alencar, de 53 anos, e morador do povoado de Uruás, em Petrolina (PE), diz que ficou “deprimido” nas últimas semanas por ter de pagar R$ 10 por 1 quilo de feijão. “Quando a gente planta e colhe, o produto não vale nada”.
Ele vive com a esposa e o filho de 19 anos, que está desempregado, e faz bicos. Outros dois filhos se mudaram para a cidade. Ele conta, com orgulho, que um deles é formado em Direito, “depois de ter estudado em escola pública.” A família, diz Alencar, “passa necessidades, mas não passa fome”.
Parte dos problemas da região seria amenizada com as operações do canal Pontal, para receber água do rio São Francisco. Após 18 anos de obras, o canal com 7,7 mil km ficou pronto em meados deste ano. Levaria água para atividades de fruticultura irrigada a cerca de 35 mil famílias. Contudo, a área no entorno, destinada aos sequeiros (famílias que tiveram a terra desapropriada para a obra), foi ocupada por mais de 600 sem-terra. Segundo os moradores da região, o grupo que ganhou a concessão diz que só vai inaugurar o projeto quando os invasores forem retirados do local.
Em Ouricuri, a barragem Tamboril, inaugurada nos anos 60, está seca há dois anos. O aposentado Francisco Marques da Silva, de 74 anos, foi um dos operários que trabalhou na construção da barragem, responsável pelo abastecimento de cerca de dez cidades. 
“Antes, a gente conseguia plantar jerimum, feijão, macaxeira, mas agora arriou tudo, morreu”, diz Silva. Dos seus dez filhos, quatro deixaram o sertão e foram viver em grandes cidades, como São Paulo. “Eu fiquei aqui porque dou valor a esse lugar.”

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segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Zygmunt Bauman: “As redes sociais são uma armadilha”, El País


Ele é a voz dos menos favorecidos. O sociólogo denuncia a desigualdade e a queda da classe média. E avisa aos indignados que seu experimento pode ter vida curta

Zygmunt Bauman acaba de completar 90 anos de idade e de tomar dois voos para ir da Inglaterra ao debate do qual participa em Burgos (Espanha). Está cansado, e admite logo ao começar a entrevista, mas se expressa com tanta calma quanto clareza. Sempre se estende, em cada explicação, porque detesta dar respostas simples a questões complexas. Desde que colocou, em 1999, sua ideia da “modernidade líquida” – uma etapa na qual tudo que era sólido se liquidificou, e em que “nossos acordos são temporários, passageiros, válidos apenas até novo aviso” –, Bauman se tornou uma figura de referência da sociologia. Suas denúncias sobre a crescente desigualdade, sua análise do descrédito da política e sua visão nada idealista do que trouxe a revolução digital o transformaram também em um farol para o movimento global dos indignados, apesar de que não hesita em pontuar suas debilidades.
O sociólogo Zygmunt Bauman, em Burgos (Espanha), fala na entrevista sobre o impacto das redes sociais. SAMUEL SÁNCHEZ
O polonês (Poznan, 1925) era criança quando sua família, judia, fugiu para a União Soviética para escapar do nazismo, e, em 1968, teve que abandonar seu próprio país, desempossado de seu posto de professor e expulso do Partido Comunista em um expurgo marcado pelo antissemitismo após a guerra árabe-israelense. Renunciou à sua nacionalidade, emigrou a Tel Aviv e se instalou, depois, na Universidade de Leeds (Inglaterra), onde desenvolveu a maior parte de sua carreira. Sua obra, que arranca nos anos 1960, foi reconhecida com prêmios como o Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades de 2010, que recebeu junto com Alain Touraine.
Bauman é considerado um pessimista. Seu diagnóstico da realidade em seus últimos livros é sumamente crítico. Em A riqueza de poucos beneficia todos nós?, explica o alto preço que se paga hoje em dia pelo neoliberalismo triunfal dos anos 80 e a “trintena opulenta” que veio em seguida. Sua conclusão: a promessa de que a riqueza acumulada pelos que estão no topo chegaria aos que se encontram mais abaixo é uma grande mentira. Em Cegueira moral, escrito junto com Leonidas Donskis, Bauman alerta sobre a perda do sentido de comunidade em um mundo individualista. Em seu novo ensaio, Estado de crise, um diálogo com o sociólogo italiano Carlo Bordoni, volta a se destacar. O livro da editora Zahar, que já está disponível para pré-venda no Brasil, trata de um momento histórico de grande incerteza.
Bauman volta a seu hotel junto com o filósofo espanhol Javier Gomá, com quem debateu no Fórum da Cultura, evento que terá sua segunda edição realizada em novembro e que traz a Burgos os grandes pensadores mundiais. Bauman é um deles.
Pergunta. Você vê a desigualdade como uma “metástase”. A democracia está em perigo?
Resposta. O que está acontecendo agora, o que podemos chamar de crise da democracia, é o colapso da confiança. A crença de que os líderes não só são corruptos ou estúpidos, mas também incapazes. Para atuar, é necessário poder: ser capaz de fazer coisas; e política: a habilidade de decidir quais são as coisas que têm ser feitas. A questão é que esse casamento entre poder e política nas mãos do Estado-nação acabou. O poder se globalizou, mas as políticas são tão locais quanto antes. A política tem as mãos cortadas. As pessoas já não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre suas promessas. É o que está evidenciando, por exemplo, a crise de migração. O fenômeno é global, mas atuamos em termos paroquianos. As instituições democráticas não foram estruturadas para conduzir situações de interdependência. A crise contemporânea da democracia é uma crise das instituições democráticas.
"Foi uma catástrofe arrastar a classe media ao precariat. O conflito já não é entre classes, mas de cada um com a sociedade”
P. Para que lado tende o pêndulo que oscila entre liberdade e segurança?
R. São dois valores extremamente difíceis de conciliar. Para ter mais segurança é preciso renunciar a certa liberdade, se você quer mais liberdade tem que renunciar à segurança. Esse dilema vai continuar para sempre. Há 40 anos, achamos que a liberdade tinha triunfado e que estávamos em meio a uma orgia consumista. Tudo parecia possível mediante a concessão de crédito: se você quer uma casa, um carro... pode pagar depois. Foi um despertar muito amargo o de 2008, quando o crédito fácil acabou. A catástrofe que veio, o colapso social, foi para a classe média, que foi arrastada rapidamente ao que chamamos de precariat (termo que substitui, ao mesmo tempo, proletariado e classe média). Essa é a categoria dos que vivem em uma precariedade contínua: não saber se suas empresas vão se fundir ou comprar outras, ou se vão ficar desempregados, não saber se o que custou tanto esforço lhes pertence... O conflito, o antagonismo, já não é entre classes, mas de cada pessoa com a sociedade. Não é só uma falta de segurança, também é uma falta de liberdade.
P. Você afirma que a ideia de progresso é um mito. Por que, no passado, as pessoas acreditavam em um futuro melhor e agora não?
R. Estamos em um estado de interregno, entre uma etapa em que tínhamos certezas e outra em que a velha forma de atuar já não funciona. Não sabemos o que vai a substituir isso. As certezas foram abolidas. Não sou capaz de profetizar. Estamos experimentando novas formas de fazer coisas. A Espanha foi um exemplo com aquela famosa iniciativa de maio (o 15-M), em que essa gente tomou as praças, discutindo, tratando de substituir os procedimentos parlamentares por algum tipo de democracia direta. Isso provou ter vida curta. As políticas de austeridade vão continuar, não podiam pará-las, mas podem ser relativamente efetivos em introduzir novas formas de fazer as coisas.
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O sociólogo Zygmunt Bauman. SAMUEL SÁNCHEZ
P. Você sustenta que o movimento dos indignados “sabe como preparar o terreno, mas não como construir algo sólido”.
R. O povo esqueceu suas diferenças por um tempo, reunido na praça por um propósito comum. Se a razão é negativa, como se indispor com alguém, as possibilidades de êxito são mais altas. De certa forma, foi uma explosão de solidariedade, mas as explosões são muito potentes e muito breves.
P. E você também lamenta que, por sua natureza “arco íris”, o movimento não possa estabelecer uma liderança sólida.
R. Os líderes são tipos duros, que têm ideias e ideologias, o que faria desaparecer a visibilidade e a esperança de unidade. Precisamente porque não tem líderes o movimento pode sobreviver. Mas precisamente porque não tem líderes não podem transformar sua unidade em uma ação prática.
P. Na Espanha, as consequências do 15-M chegaram à política. Novos partidos emergiram com força.
"O 15-M, de certa forma, foi uma explosão de solidariedade, mas as explosões são potentes e breves"
R. A mudança de um partido por outro não vai a resolver o problema. O problema hoje não é que os partidos estejam equivocados, e sim o fato de que não controlam os instrumentos. Os problemas dos espanhóis não estão restritos ao território nacional, são globais. A presunção de que se pode resolver a situação partindo de dentro é errônea.
P. Você analisa a crise do Estado-nação. Qual é a sua opinião sobre as aspirações independentistas da Catalunha?
R. Penso que continuamos com os princípios de Versalhes, quando se estabeleceu o direito de cada nação baseado na autodeterminação. Mas isso, hoje, é uma ficção porque não existem territórios homogêneos. Atualmente, todas as sociedades são uma coleção de diásporas. As pessoas se unem a uma sociedade à qual são leais, e pagam impostos, mas, ao mesmo tempo, não querem abrir mão de suas identidades. A conexão entre o local e a identidade se rompeu. A situação na Catalunha, como na Escócia ou na Lombardia, é uma contradição entre a identidade tribal e a cidadania de um país. Eles são europeus, mas não querem ir a Bruxelas por Madri, mas via Barcelona. A mesma lógica está emergindo em quase todos os países. Mantemos os princípios estabelecidos no final da Primeira Guerra Mundial, mas o mundo mudou muito.
P. As redes sociais mudaram a forma como as pessoas protestam e a exigência de transparência. Você é um cético sobre esse “ativismo de sofá” e ressalta que a Internet também nos entorpece com entretenimento barato. Em vez de um instrumento revolucionário, como alguns pensam, as redes sociais são o novo ópio do povo?
R. A questão da identidade foi transformada de algo preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar a sua própria comunidade. Mas não se cria uma comunidade, você tem uma ou não; o que as redes sociais podem gerar é um substituto. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa ter uma interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se envolver em um diálogo. O papa Francisco, que é um grande homem, ao ser eleito, deu sua primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um ateu autoproclamado. Foi um sinal: o diálogo real não é falar com gente que pensa igual a você. As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a controvérsia… Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.
Estado de crise. Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni. Editora Zahar. 192 p

Morre aos 73 anos o arquiteto e urbanista Carlos Bratke, OESP


O arquiteto e urbanista paulistano Carlos Bratke, conhecido por transformar uma região pantanosa da zona sul de São Paulo na empresarial Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, no Brooklin, morreu no início da tarde desta segunda (9), aos 73 anos. Ele trabalhou normalmente na parte da manhã, foi almoçar em sua casa e, em seguida, não resistiu a um mal súbito.
Com quase 50 anos de carreira, Bratke acumulava cerca de 300 obras no currículo. Em 2009, um de seus trabalhos, o Edifício Oswaldo Bratke - o nome homenageia seu pai, arquiteto que viveu entre 1907 e 1997 -, foi selecionado pelo Conselho Curador do museu francês Georges Pompidou para compor seu acervo permanente. 
Em suas obras, espaço não necessariamente precisava ser construído. A fascinação pelos vazios vinha de sua predileção pela modernista Lina Bo Bardi (1914-1992), conforme ele disse ao Estado em 2009. 
Foto: Epitacio Pessoa/Estadão
Carlos Bratke
O arquiteto Carlos Bratke.
Bratke graduou-se em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie aos 25 anos. Ao longo da carreira, dividiu-se entre criações de projetos, atividades docentes - lecionou no Mackenzie e na Belas Artes - e publicações. São de sua lavra cerca de 60 edifícios da Berrini, a Igreja São Pedro e São Paulo - nas bordas do Parque Alfredo Volpi - e o Parque do Povo. Também assinou projetos de várias escolas públicas e particulares, centros culturais, indústrias, shopping centers, hotéis e residências. Sua consistente carreira rendeu convites para projetar no Uruguai, Israel, México e Estados Unidos. "Durante a construção, ficou minha placa lá na Quinta Avenida de Nova York", contou o arquiteto ao Estado, com indisfarçável orgulho, quando se recordava da sede de uma joalheria de luxo que concebeu, em 1999. 
Repercussões. "Muito entristece a impossibilidade abrupta de convívio com colegas como o Carlos Bratke - sempre atentos às questões mais importantes da profissão, sempre disponíveis quando chamados a contribuir para o desenvolvimento da Arquitetura e do Urbanismo com seus conhecimentos técnicos, sua cultura vasta, sua inteligência sem pretensão", destacou o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-BR), Haroldo Pinheiro. "Perdi um amigo, a Arquitetura perdeu um de seus grandes nomes, os arquitetos perderam um de seus grandes defensores", resumiu Gilberto Bellezza, presidente da seção paulista do CAU. 
"Suas obras eram muito coerentes. Ele sabia otimizar os espaços como um verdadeiro urbanista", disse Benedito Lima de Toledo, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
"Ele apontou um caminho que seria uma saída pós-moderna para a Arquitetura do Brasil. Deu uma certa renovada na linguagem moderna aqui em São Paulo. Foi, talvez, um dos poucos que conseguiu incorporar uma linguagem atual sem deixar para trás a herança modernista", avaliou o arquiteto e urbanista Henrique de Carvalho, do Ateliê Tanta. 
O funeral ocorre a partir das 11h desta terça (10), no Funeral Home (R. São Carlos do Pinhal, 376, Bela Vista). O enterro está marcado para as 16h, no Cemitério Redentor (Av. Dr. Arnaldo, 1105, Sumaré). 
Berrini. Várzea do Rio Pinheiros, a área ficou conhecida como dreno do Brooklin. Em 1975, três arquitetos - Carlos Bratke, Roberto Bratke e Francisco Collet - se instalaram no local e começaram a bolar projetos para a avenida, incluindo a drenagem do terreno. Era um bairro desvalorizado. Com as melhorias, começou ali uma urbanização acentuada, principalmente no início da década de 1980. A partir dos anos 1990, a região da Berrini se consolidou como um dos mais importantes polos comerciais paulistanos. Quarenta e dois depois, o escritório do arquiteto Carlos Bratke continua ocupando um endereço da avenida que não parou de progredir economicamente. Ele via o sucesso da janela.