Delfim Netto comprou seu primeiro livro na Civilização Brasileira, no Centro de São Paulo, quando era adolescente. Sete décadas depois, ele tem 250 mil livros. Eles estão acomodados num galpão com vários salões no sítio do ex-ministro em Cotia, nas imediações de São Paulo. Quer dizer, ele supõe que sejam 250 mil. “Usando como critério o número de artigos e ensaios, que são o usual no meu campo, o da economia, acho que a biblioteca pode ter uns 500 mil itens”, disse recentemente.
Ele se apressou em explicar que não setrata de uma biblioteca preciosa. “Não tenho raridades, nem primeiras edições, nem autógrafos, nem manuscritos”, disse.“É apenas uma biblioteca de trabalho, não sou um fetichista.” O ex-deputado tem, por exemplo, as primeiras edições dos clássicos da economia, de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, a O Capital, de Karl Marx. Mas são primeiras edições falsas. “Uma editora alemã republicou recentemente todos os clássicos, exatamente como na primeira edição, com o papel, o tamanho e a tipologia originais”, contou Delfim Netto. “Assim, pode-se ter uma noção de como o livro chegou aos leitores pela primeira vez. E melhor: como se fosse novo. É coisa de alemão.”
Se não é dono de edições príncipes, ele tem, em contrapartida, todas as dezenove edições deIntrodução à Análise Econômica, de Paul A. Samuelson, o primeiro americano a ganhar o Nobel de Economia, em 1970. “Não é uma extravagância”, disse, “é para poder comparar como Samuelson mudou a maneira de pensar e alterou o livro ao longo de mais de meio século.” A seção dedicada a Marx, por sua vez, é de dar inveja a marxistas empenhados. A biblioteca, por tudo isso, tem valor, inclusive monetário (“É o meu maior patrimônio”), mas que decorre mais do conjunto do que dos livros individuais.
Ela está divida em quatro assuntos principais: economia, matemática, história e filosofia (que abarca sociologia, política e afins). Seus idiomas, pela ordem, também são quatro: inglês, francês, português, italiano; e alguma coisa de alemão e espanhol. Não há nada de ficção e adjacências. “Os de literatura, que são poucos, eu deixo em casa até para não misturar”, disse.
Obviamente, os livros estão catalogados. Seus dados sumários (título, autor, ano e local de publicação) ficam armazenados num computador. Mas o sistema de catalogação não é o mais disseminado. Foi o próprio Delfim Nettoquem o inventou, e não tem nada de complicado. A ficha no computador registra apenas três informações: a sala, a estante e a prateleira. Chegando a ela, o livro precisa ser achado num espaço de pouco mais de 1 metro.
Depois de muito comprar livros e revistas separadamente, em livrarias e sebos, Delfim passou a adquirir bibliotecas: “Geralmente, comprava de professores de economia. A família vendia porque os descendentes não tinham interesse no assunto. E também para liberar quartos, salas e, às vezes, apartamentos inteiros ocupados por livros.”
O ex-ministro passou a frequentar sebos e antiquários no exterior. “Quando eu viajava como ministro, digamos para Estocolmo, eu pedia antes a um segundo-secretário da nossa embaixada que descobrisse o endereço dos três melhores sebos. Aí, depois dos compromissos, eu reservava uma horinha para visitá-los.” Um dos seus sebos preferidos, ainda hoje, é o Strand, no Village, em Nova York. Foi lá dezenas de vezes e, empurrando um carrinho de supermercado, percorreu as lendárias 18 milhas de estantes, à cata de livros usados de matemática e economia. Enchia vários carrinhos e despachava caixas cheias de livros por navio. Quando embaixador em Paris, ele frequentava os bouquinistes na beira do Sena e antiquários de Saint-Germain-des-Prés.
Aí chegou a internet. “Foi uma festa”, lembrou Delfim. Surgiram os sebos on-line. Depois as redes de sebos. “Aí, você descobria que em Cingapura havia o livro que você procurava há décadas”, disse. “Aliás, acho que os sebos de Cingapura são os mais organizados do mundo.”
Pois essa biblioteca formidável, que faz os olhos de Delfim Netto se iluminarem, não é mais sua. Ele a doou à Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, onde entrou em 1948, tornou-se catedrático dez anos depois, fez o doutorado (origem do livro O Problema do Café no Brasil, que virouum clássico) e ainda hoje organiza seminários. Agora, em 1º de maio, ele completará 83 anos de vida. “Não há sentido, na minha idade, em manter uma biblioteca assim”, explicou. “Na USP, espero que ela entusiasme os novos alunos e depois os auxilie nas pesquisas.”
Pelo acordo com a faculdade, a biblioteca será mantida tal e qual está hoje, em Cotia, com a mesma divisão de salas, estantese prateleiras. Até a poltrona e a escrivaninha de Delfim irão para as novas instalações. “O bom é que poderei frequentar a biblioteca”, disse o ex-ministro.
Antônio Delfim Netto nasceu no Cambuci, bairro de trabalhadores de São Paulo, numa família de imigrantes italianos pobres. Ficou órfão de pai ainda criança e começou a trabalhar aos 14 anos, como contínuo da Gessy, uma fábrica de sabonetes. Estudou sempre em escolas públicas. “Sem a USP, eu não seria nada”, ele acha. “E toda retribuição que eu possa fazer à Faculdade de Economia nunca compensará o que ela me deu.”
Ele foi ministro da ditadura em duas ocasiões (1967–74 e 1979–85), embaixador e deputado em cinco legislaturas. Jamaisdeixou de estudar e ensinar na USP. “O nosso Departamento de Economia é discreto, não faz barulho, mas está entre os melhores do Brasil”, avalia. “E note que, de todos os economistas conhecidos que estudaram lá, nenhum virou banqueiro ou ficou bilionário no mercado financeiro. É uma característica da USP.”
Os outros bons departamentos de economia, na sua avaliação, seriam o da Faculdades Campinas, a Facamp, o da PUC do Rio, o Instituto de Ensino e Pesquisa (o antigo Ibmec, agora Insper) e a Fundação Getulio Vargas. “Cada um tem a sua particularidade. O do João Manoel e odo Belluzzo, na Facamp, estão ajudando o desenvolvimento do interior de São Paulo. A PUC está mais na matemática financeira. O Ibmec, do Claudio Haddad, poderia estar nos Estados Unidos, de tão eficiente. A FGV presta um grande serviço público. E a USP, oras, é a USP.”