domingo, 17 de agosto de 2014

Não é só dizer ‘não coma’


MÔNICA MANIR
03 Maio 2014 | 14h 48

Se a cantina vende refrigerante e salgadinho, o que o aluno vai entender? Mudar hábitos alimentares e de vida de crianças cada vez mais obesas exige esforço de escola, família, governo

É epidemia, e das grandes. Sem rodeios, 50% dos brasileiros acima dos 18 anos estão gordos, bem gordos. E 17,5% atingiram um índice de massa corporal alarmante, com todas as restrições que isso possa causar – a restrição da vida, inclusive. Em dez anos, triplicou no País o número de atestados de óbito nos quais o excesso de peso aparece como causa. Em suma, morreu-se de quê? De obesidade.
O último dado mórbido é de 2011, quando a cineasta Estela Renner já viajava pelo Brasil com a equipe da Maria Farinha Filmes. Ela já havia lido que, em cada 5 crianças obesas, 4 permaneceriam assim quando adultas. Então voltou a fita. Se é de menino que se torce o pepino (ou seria picles?), então faria um filme sobre meninos e meninas acima do peso. A trupe levou dois anos para concluir o documentário Muito além do Peso, visto por mais de 1,5 milhão de pessoas e requisitado pelos americanos na sua batalha contra a obesidade. Depois da exibição do filme está previsto um debate mediado por Michelle Obama, a primeira-dama que abraçou a causa.
O filme confirmou que os pequenos brasileiros não sabem diferenciar um pimentão de um rabanete, um abacate de um melão. Mal fazem exercícios, e ainda assistem à TV mais que todas as crianças do mundo. Há muitos com diabete, pressão alta, problemas articulares. “Imagine o que foi sair da casa de uma criança que deixou de brincar porque sente dor no joelho”, diz Estela, emocionada. De alguma forma, todos querem sair do tamanho GG. Mas continuam presos, com a família, a hábitos que se arrastam por gerações.
“Falta uma campanha de massa do governo mostrando como se alimentar bem”, resume Estela, mãe de três filhos, já envolvida em outro filme, que será lançado em junho. Ele se chama Tarja Branca, e também é uma espécie de rebobinamento. “A cura da obesidade infantil está lá atrás, na brincadeira, na convivência, no outro. Estamos falando de uma dimensão maior, não mais de salgadinhos.” Tudo bem, mas, na entrevista a seguir, o salgadinho segue à mesa.
Vocês acompanharam o que aconteceu com as crianças que aparecem no filme?
Chegamos a fazer algumas visitas, demos alguns telefonemas. Infelizmente a maioria das crianças ganhou mais peso. Com uma delas a gente interferiu, conseguiu uma nutricionista voluntária que fosse até sua cidade, de difícil acesso. Mas só esses meninos terem participado do filme não fez com que suas realidades mudassem. Abriu o caminho para uma conversa, eles ficaram populares na época do lançamento, mas não é uma mudança fácil.
Nessas realidades, a TV estava muito presente. Isso fica evidente no filme. Imagino que numa segunda versão vocês teriam de destacar computadores e celulares, não?
A criança brasileira ainda é a que mais assiste a televisão no mundo, mais que os americanos. Dá uma média de cinco horas por dia. E hoje a gente não tem só a televisão. Tem o computador, o videogame, os tablets, os celulares. São muitas telas. Um estudo que eu queria ter colocado no filme, mas acabei deixando de fora, mostra como antigamente as crianças de 2, 3, 4 anos se desenhavam com os braços muito compridos, como um Menino Maluquinho. Hoje elas se desenham com os braços curtos, porque mal utilizam os braços e as pernas. Elas utilizam os dedos.
Então daqui a pouco vão se desenhar com dedos enormes?
Sim, com dedões. Acho que a gente precisa aumentar a cultura do estímulo a brincar, a brincar como coisa urgente e séria.
Mas as crianças podem entender que estão brincando quando mexem no computador, no celular, no tablet.
Eles podem entender que sim. Mas eu falo de brincar usando o corpo, o irmão, o amigo, a areia, o sol, o mar, o vento, o espaço, usando cair, usando levantar.
Muitos pais temem pela segurança dos filhos nesse brincar solto.
Temos muito menos ruas de lazer que na nossa época. A rua era o nosso quintal. Hoje é pauta da escola falar de quintal como se fosse uma ficção. Sim, é perigoso deixar a criança na rua sem supervisão. O que estou sugerindo é que se diminua o tempo de tela, que se dê uma caixa de papelão para a criança, ou não se dê nada. De uma forma genérica, as crianças precisam do ócio, do tédio, para criar. O que os pais têm dificuldade para entender é que, ao deixar o filho sozinho na frente da TV, isso não quer dizer que ele esteja seguro.
Por que não?
Quando você deixa seu filho sem sua presença para ajudá-lo a digerir tudo o que está vendo, você está deixando seu filho com estranhos. As pessoas da tela estão falando com os seus filhos. Existe uma comunicação mercadológica dirigida a eles, de comunicadores que estudaram nas melhores universidades. Eles não só estimulam a venda de produtos para crianças, entre eles alimentos engordativos, como tentam convencer os filhos a pedir aos pais que comprem produtos para adultos: carros, geladeiras... Sim, a obesidade é multifatorial. Mas, sem dúvida, o excesso de telas  está associado à obesidade infantil.
Entre as medidas de prevenção da obesidade propostas pelo governo está o investimento em academias de saúde e espaços públicos com aparelhos para exercícios. Tudo dirigido ao adulto. O que tem sido feito para a criança nesse sentido?  
Acho que muito pouco. Com 200 horas de filmagem Brasil afora, deu para perceber que as crianças não sabem andar de bicicleta. Claro! Onde elas vão pedalar? Quanto de área livre elas têm disponível? Além disso, para a criança aprender a andar de bicicleta o pai precisa ter um automóvel que a leve ao parque. Se não tiver bicicleta, tem de pegar fila e pagar por uma. Também tem que ir num horário decente porque corre o risco de perder o filho no meio da multidão. Outro dado é este: muitas crianças dizem que a aula de educação física fica só na teoria e é oferecida somente a partir de determinado ano. Não tem nos primeiros anos de vida.
Por que a educação física perdeu importância no currículo?
Não sei dizer exatamente, mas um professor de educação física do Rio, Marco Santoro, que entrevistei depois de filmar Corpo e Movimento, me falou da herança militar na escola. Tem uma coisa de andar de mãozinha para trás, de não cair, não sofrer acidente, não correr, não fazer barulho. Não se educa nem se cria mais a criança com largueza.
O Ministério da Saúde afirmou que, só em 2013, o programa Saúde na Escola beneficiou 18 milhões de crianças e adolescentes pesando e medindo todos os alunos e encaminhando aqueles que estavam acima do peso. O que mais o ambiente escolar pode fazer para combater a obesidade?
Em primeiro lugar, se a cantina vende refrigerante, hambúrguer e salgadinho, que mensagem a escola está passando para as crianças? Que autoriza aquilo. Em segundo lugar, se a criança se alimenta três vezes por dia ou mais, e pro resto da vida, ela tem de ter aula de educação alimentar no currículo. Não basta uma palestra. É matemática, português, educação alimentar. O poder público também poderia atuar de forma mais direta. A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, está lançando um prêmio chamado Educação além do Prato – inclusive inspirado no filme –, que deve premiar escolas com o trabalho mais interessante junto às merendeiras. Quer receitas mais saudáveis. Precisa ver se é uma atividade pontual ou curricular. Outra coisa: sabe aquele bolinho que aparece no filme e fazia um ano e meio que continuava inteiro? A Prefeitura assistiu ao documentário, entrou em contato com o fornecedor e disse que só voltaria a comprar o bolinho da sua empresa quando ele estragasse. O fornecedor passou um ano reformulando o produto e agora chegou a uma receita melhorada.
Por que o governo não faz uma campanha de massa contra a obesidade?
Um terço das crianças está com sobrepeso e obesidade. O Estadão divulgou um levantamento das mortes diretas provocadas pelo excesso de peso. Ainda tem as indiretas. Nos EUA, o killing the most é a obesidade, e a gente está seguindo por esse caminho. O governo ganharia se fizesse uma campanha muito forte de prevenção.
Que não está acontecendo.
Não estou vendo… Acho que é uma questão política. A indústria alimentícia é muito competente na sua distribuição de produtos. Em qualquer cidadezinha, no interior do interior, você encontra todos os produtos industrializados, mas não necessariamente os frescos. Além disso, ela é muito competente em deixar aquele produto barato. E, na composição, a mistura de sal, açúcar e gordura é ultrapalatável. Faz com que o consumidor goste daquilo e fique aprisionado pela língua. Quando o governo faz campanha pró-aleitamento materno, o resultado é incrível. Portanto, ele precisa dizer: alimente-se bem. Tem que ensinar às pessoas o que comer e o que evitar em excesso. Sabemos que, onde tem água parada, pode ter o mosquito da dengue. No entanto, o governo dá prêmio de parceiro da saúde para uma rede de fast-food e o ministro da Saúde surge no carnaval dentro do camarote de uma empresa de refrigerante.  
De quem foi a ideia de mostrar, em potes, quanto tem de açúcar dentro de um refrigerante e quanto tem de óleo num pacote de salgadinho?
Foi minha. Você tem um pacote com 150 g de salgadinho. No rótulo está escrito: em cada 20 g, há tanto de óleo. O pai enxerga mal o que está escrito, a criança não vai comer 20 g e sim o pacote inteiro, e é preciso fazer uma regra de três no supermercado. Pensei: qual a forma mais transparente de mostrar o que as pessoas estão ingerindo? Eu me baseei em pesquisas muito sérias sobre os alimentos que as crianças mais ingerem: os achocolatados, os salgadinhos, os sucos de néctar. Eles não estão ali de forma aleatória. 
As embalagens e os rótulos dos produtos alimentícios deveriam ser mudados?
Quando comecei a editar o filme, tive de fazer um recorte grande de conteúdo. Havia temas tão avançados em obesidade que eu pensei “vão achar que estou viajando”. Um exemplo: hoje em dia você vê no verso de um maço de cigarro um pé apodrecendo, uma pessoa com câncer. Nos EUA, onde a discussão sobre a obesidade está muito na frente, já se fala em colocar alertas desse tipo nas embalagens dos alimentos. Querem que a gente veja um rótulo e perceba, de fato, o que tem dentro daquele produto e as consequências da sua ingestão em excesso. Eu achava que, se trouxesse essa discussão para cá, num filme assistido especialmente por brasileiros, as pessoas não iam entender. 
Seria demais para aquele momento?
Sim, a discussão sobre obesidade no Brasil era muito grande entre médicos e educadores, mas não entre a população. Acho que as pessoas que estão buscando alimentos mais saudáveis, orgânicos, são as que estão pensando sobre esse conteúdo há muito tempo, vivenciaram alguma experiência dolorosa, receberam referências fortes de outros grupos. Para elas, o que deixei fora do filme talvez funcionasse. 
De qualquer forma, um rótulo com imagens chocantes é controverso. Alguns dizem que pode ter efeito contrário no consumidor.  
Mas mostrou uma postura importante do governo: a de que o cigarro faz mal. Tem muita gente querendo trabalhar a questão do rótulo. Contudo, o brasileiro não lê rotulo, ele assiste à propaganda. O rótulo acaba sendo um “eu avisei”. A pessoa comprou porque quis. É sempre o indivíduo. Mas uma criança de 9 anos não escolhe ser gorda, e uma mãe de uma criança de 9 anos também não escolhe que seu filho tenha sobrepeso. Ela sabe quanto sofre uma criança com esse problema. Então tem de ser uma educação alimentar de massa, nas escolas, na TV aberta.  
Como é a autoimagem da criança obesa?
Uma terapeuta especializada em crianças, a Clarissa Ollitta, diz o seguinte: “Ou as crianças obesas se sentem monstruosas ou elas se sentem invisíveis”. Vale lembrar que, em cada cinco crianças obesas, quatro serão obesas quando adultas. Mas, ainda que uma delas vire uma adulta magra, talvez nunca se recupere dessa infância. A Louise Bourgeois, artista plástica, já falava que “a infância nunca perdeu sua mágica, seu encantamento e seu drama”. A infância já é dramática por si só. Você tem de ser aceita, tem de ser gostada. Precisamos dar mais um obstáculo pra ela? 
Falando em drama, a criança pode passar a comer compulsivamente por causa de um trauma – o divórcio dos pais, por exemplo. Há um caso assim no filme.
Sim, mas proporcionalmente falamos mais de crianças que chegaram ao sobrepeso e à obesidade quase sem perceber. Isso aconteceu por causa da transição do alimento natural para o industrializado. Elas ficaram viciadas nesse tipo de alimento, não fazem refeição com a família, não sabem diferenciar um abacate de um rabanete, um melão de uma manga. Eu achava que isso acontecia mais no ambiente urbano. O choque foi perceber essa desinformação no Brasil inteiro.  
O que acha dos programas de TV em que adultos com sobrepeso competem para ver quem emagrece mais?
Esses programas focam muito no indivíduo. Aquela pessoa tem de perder peso porque está assim por culpa dela. Primeiro, há uma linha genética. Os pais são gordinhos, daí que muitas crianças são geneticamente propensas a ser gordinhas também. A OMS tem um dado de porcentagem aceitável de obesos. Mas essas competições televisivas são perigosas porque não focam no que deixou metade da população com sobrepeso ou obesidade. Estamos falando de um ambiente obesogênico, não de um indivíduo que quis ficar assim. E é difícil falar disso porque, se ele é um adulto, ele é responsável por suas escolhas. Mas, se foi uma criança obesa, suas células têm memória. O tratamento é muito complicado porque as pessoas não são uma boca. Como se trata o alcoólatra? Basta dizer “não beba”? Não. Você oferece terapia, você dá remédio, dá carinho, dá conforto. Com uma criança – e mesmo com um adulto obeso – é a mesma coisa. Não pode falar “não coma”.
Você morou sete anos nos EUA e acompanhou a campanha do governo contra a obesidade. Que percepções trouxe de lá?
Quando a Michelle Obama abraçou a causa com o Let’s Move, todo mundo começou a falar mais de obesidade, inclusive no Brasil. Michelle enfrentou muita dificuldade por causa da força das marcas, das corporações. Tanto que começou falando sobre composição de produto e hoje trata mais de atividade física. É uma mulher corajosa. Sendo mãe, imagino como deve sofrer ao ver as crianças americanas obesas. Agora, é um modelo de vida que não valoriza a alimentação natural. Um amigo morou três meses nos EUA e contratou uma pessoa para ajudar na casa. No terceiro dia essa ajudante falou: “Vou ter de cobrar o dobro, eu não sabia que vocês iam usar a cozinha”. As pessoas não usam o fogão lá.
E no Brasil é muito diferente?
Vejo algumas pessoas cozinhando em casa, outras saindo para comer especialmente comida caseira. Mas o que a gente mais percebe são os restaurantes lotados, com TV em todos eles. Pensando nessas sociedades de consumo, eu queria fazer um paralelo. Quando a gente fez Criança, a Alma do Negócio, observei a quantidade de lixo de plástico que as crianças tinham em casa. Falo de brinquedos que os pais compraram, as crianças brincaram uma vez e abandonaram em seguida. Isso acontecia tanto com crianças de comunidades carentes quanto com crianças de classe AA. Eu acho que o estímulo à compra e a obesidade infantil estão intimamente ligados. A criança não só está acumulando na sua casa como está acumulando no corpo. São calorias vazias. Ela quer preencher um vácuo que o alimento não vai preencher. Isso só vai acontecer  através de um amigo, do afeto, da convivência. Por isso a questão é tão maior. Não e só o sentido do alimento, é o sentido da vida.
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O mártir da pressa


BRENDA FUCUTA
03 Maio 2014 | 15h 34

Vinte anos após o escândalo da Escola Base, a morte do proprietário, Icushiro Shimada, lembra aos jornalistas que o tempo é um deus cruel

A Escola Base é a pedra no sapato da minha geração, um grupo de jornalistas que testemunhou e relatou coisas sensacionais, como as Diretas Já e todo o processo do impeachment de Collor.
Quando estourou o escândalo, eu trabalhava na redação da Veja. Na revista, que derrubou um presidente, o processo de apuração era extremamente rigoroso. Tínhamos os editores, que escrutinavam os textos e seus repórteres, e tínhamos a joia da coroa, os checadores: um time de jornalistas que trabalhava nos bastidores questionando as informações do texto final e alertando a redação para possíveis equívocos.
Os checadores não me alertaram para potenciais fragilidades na história da Escola Base. Nem os editores. Seria exigir muito, já que a notícia, anunciada primeiro na TV, de que havia uma denúncia de abuso sexual numa escolinha de bairro em São Paulo, tinha se alastrado de tal forma que a questão não era de checagem ou de bom jornalismo. Era de competição por audiência e luta contra o tempo. Quem conseguiria a primeira entrevista? Quem descobriria os detalhes mais sórdidos?
Para repórteres de TV daquela época (imagino, ainda hoje), tempo é um deus cruel. Você precisa entrar no ar em uma hora, ao vivo, com uma notícia que vai chamar a atenção de milhões de pessoas e tudo que há, para ajudar, é o histórico (o que seus colegas já disseram sobre o assunto) e suas fontes (nesse caso, o delegado que recebeu a denúncia de abuso sexual de duas famílias).
Quando eu estava sentada à sala da casa de uma das mães que acusavam os professores da escola de terem abusado de seu filho de 4 anos, assisti a um desfile apressado de vários colegas de TV. Eles tinham perguntas prontas, a mãe tinha respostas que pareciam cada vez mais fabulosas e ninguém parecia ter a obrigação de duvidar.
Eu contava com uma vantagem: trabalhava numa revista semanal e, diferentemente de meus colegas de TV, tinha um pouco mais de tempo para apurar a história. Era um privilégio e eu o usei. Tive tempo para ver a mãe do garoto supostamente abusado dirigir toda a sua atenção para os repórteres enquanto a criança brincava, sozinha, num dos quartos da casa.
Tive tempo para perguntar a ela se o filho tinha intestino preso (pergunta que só fazia sentido porque tive tempo de entrevistar médicos que me explicaram que fissuras anais, relatadas no exame de corpo do boletim do IML, podiam ser fruto tanto de abuso sexual quanto de constipação intestinal).
Imagino que esse dado tenha começado a entornar o caldo do escândalo. Na reportagem que escrevi cheguei a citar um caso semelhante, que tinha acontecido nos Estados Unidos, de denúncia infundada de abuso sexual de crianças contra uma escola. Lembro que, após um ou dois meses de reportagens sobre o caso, o assunto começou a tomar outro rumo. Depois de terem sido linchados moralmente, os donos e os professores da Escola Base mereceram o benefício da dúvida por parte da imprensa e da Justiça. Veículos de imprensa, inclusive a Veja, foram condenados e multados. Repórteres que cobriram o assunto devem se sentir culpados até hoje.
Um mês depois do aniversário de 20 anos do escândalo, soube da morte de um dos donos da Escola Base, Icushiro Shimada, no último dia 16, de infarte. Fico imaginando o que ele passou nestas duas décadas. Imagino também o que a mãe da criança de 4 anos sentiu quando percebeu que podia estar errada. O que esse menino, hoje um adulto, tem como memória da história da qual, involuntariamente, foi protagonista...
A pressa é uma inimiga da verdade. Unanimidade, também. Pressa, unanimidade e histeria foi o coquetel explosivo do caso Base, destrutivo a ponto de ter deixado cicatrizes irreparáveis em todos.
Curiosamente, a mesma mistura aconteceu no mês passado, quando o Ipea divulgou dados equivocados sobre o que os brasileiros pensam do estupro. A cobertura do assunto, agora mais veloz com o jornalismo online, foi pouco crítica e pouco profunda. Quando os dados começaram a levantar suspeitas, a fogueira já estava queimando nas redes sociais, com protestos de toda ordem. Nesse caso, o erro custou apenas um emprego (do diretor do Ipea). Eu confesso que também, apressada, publiquei o resultado da pesquisa no meu blog. Depois, me desculpei por não ter feito o que o jornalista deve fazer sempre e cada vez mais: desconfiar. Na nossa profissão, ao contrário de tantas outras, o ceticismo pode salvar vidas e reputações.
BRENDA FUCUTA É JORNALISTA E SÓCIA DA AGÊNCIA INCRÍVEL! – DESIGN DE CAUSAS

Despreparo armado


GUARACY MINGARDI* - O ESTADO DE S.PAULO
04 Maio 2014 | 02h 07

Incompetência e desleixo fazem do Brasil um dos países em que mais policiais matam e morrem


O médico Ricardo Seiti morreu no domingo passado, após ser baleado num tiroteio dentro do 2º. DP de Santo André. Seiti estava na delegacia para registrar um B.O. de um acidente de trânsito quando foi alvejado numa confusão provocada pela própria polícia paulista.
Robert Peel pode ser considerado um dos fundadores do Estado moderno. Em 1829, quando era secretário do Interior da Inglaterra, introduziu uma série de reformas no direito penal britânico, mas é lembrado até hoje por ter criado a Polícia Metropolitana londrina (Metropolitan Police Act). Num país que prezava a liberdade e tinha medo de uma polícia truculenta ou a serviço do despotismo, Peel modelou uma organização baseada no profissionalismo, eficiência e legalidade. A nova polícia deveria ser regida por alguns princípios básicos, dos quais o sexto pregava o seguinte: "A polícia usa a força física na medida necessária para garantir a observância da lei ou para restaurar a ordem apenas quando o exercício da resolução pacífica, da persuasão e do aviso for insuficiente".
Quase dois séculos depois, ainda não são todos os que aprovam esse modelo. Parte significativa da sociedade brasileira acredita que são ideias ultrapassadas, que bandido bom é bandido morto. Esse ponto de vista não é novidade e independe de classe social ou grau de instrução. Mas o que dizem os apologistas da força quando a polícia mata cidadãos comuns, seja por engano ou simples incompetência?
Muitos se calam, enquanto outros ficam indignados, reclamando do tipo de atuação policial que até o dia anterior aprovavam. A desculpa é que o policial deveria saber distinguir o criminoso do "cidadão de bem". Como se isso fosse possível sem o uso de uma bola de cristal. Outra reação é culpar a instrução, o treinamento dado aos policiais. No dia em que a TV exibiu uma mulher cujo corpo foi arrastado por uma viatura da PM em Madureira, uma repórter televisiva culpou a má formação, como se alguém tivesse de ser ensinado a fechar direito o porta-malas do carro.
Esse caso é apenas um de muitos, ocorridos nos últimos meses, que resultaram em mortes desnecessárias causadas pela incompetência ou desleixo. Os mais recentes foram os homicídios do bailarino no Rio e o do médico em Santo André. O primeiro morreu por causa do desleixo de policiais que acreditam que trocar tiros em uma área densamente povoada é normal - afinal, são só favelados. O segundo, pela incompetência de um policial que começou um tiroteio dentro da delegacia quando viu pessoas correndo, o que seria quase cômico se não tivesse resultado numa tragédia.
Assim como o episódio da mulher arrastada, nenhum dos dois casos ocorreu por falta de instrução. A formação melhorou muito desde os anos 1980, quando frequentei a Academia de Polícia Civil de São Paulo. Naquela época, só para dar um exemplo concreto, os alunos do curso de investigador deram apenas 12 tiros durante os quatro meses do curso. Com certeza o policial civil aprendeu muito mais que isso na Academia, inclusive a não atirar a esmo, sem motivo válido. E os policiais militares cariocas evidentemente aprenderam no Centro de Formação de Soldados do Rio que tiroteio numa área residencial pode ser um desastre.
É evidente que a formação policial não é uma maravilha, mas não é a culpada pelas atitudes que tornam o Brasil um dos locais do mundo onde mais policiais matam e morrem. O principal vilão da história é o sistema de segurança pública brasileiro - ultrapassado, ineficiente e caro, mas que os parlamentares desconhecem e as instituições policiais querem manter a todo custo. Um dos produtos mais nocivos desse modelo é a falta de controle dos chefes sobre seus subordinados e a existência de uma cultura organizacional que faz com que a incompetência não seja punida. Em vários Estados, um oficial da PM ou delegado incompetente tem uma carreira normal, sendo promovido por tempo de serviço durante 30 anos sem ter feito nada de útil para a sociedade.
Outra faceta da cultura institucional é a distância que as polícias têm da sociedade, o que provoca repulsa a qualquer prestação de contas. Muitos policiais expressam a ideia de que, quanto menos a sociedade souber sobre suas atividades, melhor. Um dos motivos desse raciocínio torto e antidemocrático é que, quanto mais secretas forem as ações, menos argumentos terão aqueles que propõem mudanças no sistema. Portanto, as carreiras dos incompetentes não correm risco. E o sucesso dessa postura só foi possível porque eles conseguiram vender para seus colegas eficientes que o silêncio e o distanciamento da sociedade é bom para todos.
Nosso modelo de segurança, porém, não caiu do céu. Foi criado pelos constituintes de 1988 e manteve alguns princípios impostos pela ditadura militar, inclusive a militarização do braço preventivo da polícia. Com isso, afastou a prevenção da investigação, criando duas polícias rivais que passam mais tempo discutindo entre si do que aprimorando o trabalho. Só quem não vê isso são os governadores, que batem na tecla da integração (que não existe) entre as instituições. Enquanto isso os projetos de mudança na segurança hibernam no Congresso, só voltando à baila quando acontece uma desgraça. Como se não bastassem as mortes desnecessárias e a criminalidade crescente.
*Guaracy Mingardi é doutor em Ciência Política pela USP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.