BRENDA FUCUTA
03 Maio 2014 | 15h 34
Vinte anos após o escândalo da Escola Base, a morte do proprietário, Icushiro Shimada, lembra aos jornalistas que o tempo é um deus cruel
A Escola Base é a pedra no sapato da minha geração, um grupo de jornalistas que testemunhou e relatou coisas sensacionais, como as Diretas Já e todo o processo do impeachment de Collor.
Quando estourou o escândalo, eu trabalhava na redação da Veja. Na revista, que derrubou um presidente, o processo de apuração era extremamente rigoroso. Tínhamos os editores, que escrutinavam os textos e seus repórteres, e tínhamos a joia da coroa, os checadores: um time de jornalistas que trabalhava nos bastidores questionando as informações do texto final e alertando a redação para possíveis equívocos.
Os checadores não me alertaram para potenciais fragilidades na história da Escola Base. Nem os editores. Seria exigir muito, já que a notícia, anunciada primeiro na TV, de que havia uma denúncia de abuso sexual numa escolinha de bairro em São Paulo, tinha se alastrado de tal forma que a questão não era de checagem ou de bom jornalismo. Era de competição por audiência e luta contra o tempo. Quem conseguiria a primeira entrevista? Quem descobriria os detalhes mais sórdidos?
Para repórteres de TV daquela época (imagino, ainda hoje), tempo é um deus cruel. Você precisa entrar no ar em uma hora, ao vivo, com uma notícia que vai chamar a atenção de milhões de pessoas e tudo que há, para ajudar, é o histórico (o que seus colegas já disseram sobre o assunto) e suas fontes (nesse caso, o delegado que recebeu a denúncia de abuso sexual de duas famílias).
Quando eu estava sentada à sala da casa de uma das mães que acusavam os professores da escola de terem abusado de seu filho de 4 anos, assisti a um desfile apressado de vários colegas de TV. Eles tinham perguntas prontas, a mãe tinha respostas que pareciam cada vez mais fabulosas e ninguém parecia ter a obrigação de duvidar.
Eu contava com uma vantagem: trabalhava numa revista semanal e, diferentemente de meus colegas de TV, tinha um pouco mais de tempo para apurar a história. Era um privilégio e eu o usei. Tive tempo para ver a mãe do garoto supostamente abusado dirigir toda a sua atenção para os repórteres enquanto a criança brincava, sozinha, num dos quartos da casa.
Tive tempo para perguntar a ela se o filho tinha intestino preso (pergunta que só fazia sentido porque tive tempo de entrevistar médicos que me explicaram que fissuras anais, relatadas no exame de corpo do boletim do IML, podiam ser fruto tanto de abuso sexual quanto de constipação intestinal).
Imagino que esse dado tenha começado a entornar o caldo do escândalo. Na reportagem que escrevi cheguei a citar um caso semelhante, que tinha acontecido nos Estados Unidos, de denúncia infundada de abuso sexual de crianças contra uma escola. Lembro que, após um ou dois meses de reportagens sobre o caso, o assunto começou a tomar outro rumo. Depois de terem sido linchados moralmente, os donos e os professores da Escola Base mereceram o benefício da dúvida por parte da imprensa e da Justiça. Veículos de imprensa, inclusive a Veja, foram condenados e multados. Repórteres que cobriram o assunto devem se sentir culpados até hoje.
Um mês depois do aniversário de 20 anos do escândalo, soube da morte de um dos donos da Escola Base, Icushiro Shimada, no último dia 16, de infarte. Fico imaginando o que ele passou nestas duas décadas. Imagino também o que a mãe da criança de 4 anos sentiu quando percebeu que podia estar errada. O que esse menino, hoje um adulto, tem como memória da história da qual, involuntariamente, foi protagonista...
A pressa é uma inimiga da verdade. Unanimidade, também. Pressa, unanimidade e histeria foi o coquetel explosivo do caso Base, destrutivo a ponto de ter deixado cicatrizes irreparáveis em todos.
Curiosamente, a mesma mistura aconteceu no mês passado, quando o Ipea divulgou dados equivocados sobre o que os brasileiros pensam do estupro. A cobertura do assunto, agora mais veloz com o jornalismo online, foi pouco crítica e pouco profunda. Quando os dados começaram a levantar suspeitas, a fogueira já estava queimando nas redes sociais, com protestos de toda ordem. Nesse caso, o erro custou apenas um emprego (do diretor do Ipea). Eu confesso que também, apressada, publiquei o resultado da pesquisa no meu blog. Depois, me desculpei por não ter feito o que o jornalista deve fazer sempre e cada vez mais: desconfiar. Na nossa profissão, ao contrário de tantas outras, o ceticismo pode salvar vidas e reputações.
BRENDA FUCUTA É JORNALISTA E SÓCIA DA AGÊNCIA INCRÍVEL! – DESIGN DE CAUSAS
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