quarta-feira, 20 de março de 2013

De volta ao sagrado ( por José de Souza Martins)


José de Souza Martins - O Estado de S.Paulo
Acostumados com papas geograficamente distantes, mais figuras míticas do que figuras de carne e osso, a eleição de um papa argentino põe os católicos brasileiros em face de uma proximidade perturbadora. O cardeal Jorge Mario Bergoglio, eleito com o nome profético de Francisco, é figura central da Igreja Católica da Argentina. Uma Igreja que tem débitos graves com a opinião política e a consciência de seu país pela falta de clareza no seu relacionamento com a ditadura militar, com as prisões, a tortura, os desaparecimentos e mortes até mesmo de religiosos. Uma Igreja de história oposta à da Igreja Católica no Brasil, que não raro abrigou os perseguidos e falou firmemente em nome das vítimas. Igreja que defendeu os índios contra a onda genocida na ocupação da Amazônia, em nome de sua condição humana e de sua diferença antropológica. Igreja que abrigou a causa dos posseiros e dos trabalhadores rurais, alcançados pela onda de desenraizamentos e miséria decorrentes de uma política fundiária perversa. Verso e reverso, a Igreja de lá e a Igreja de cá.
Lá não havia separação entre o Estado e a Igreja, o catolicismo foi religião oficial do Estado até a nova Constituição de 1994. Ao ser economicamente mantida pelo Estado, a Igreja argentina teve seu clero convertido em corpo de funcionários públicos disfarçados. Uma Igreja mutilada e cerceada na vocação profética. Aqui, a República teve a lucidez política de separar o Estado da Igreja.
Provavelmente, Francisco carregará nos ombros o fardo imenso da falta de clareza de suas ações e omissões durante os anos medonhos da ditadura militar argentina. Mas carregará, também, o belo sentido evangélico da dura repreensão pública que dirigiu aos párocos que se recusam a batizar os bebês extramatrimoniais, os filhos de mães solteiras. Além da crítica aberta ao neoliberalismo e seus devastadores efeitos sociais.
É inútil um acerto de contas com a história pessoal de um homem que morreu ao fim do conclave para renascer com outro nome na "loggia" da Basílica de São Pedro no começo da noite escura e chuvosa do dia 13 de março e para enfrentar o silêncio da multidão surpreendida pelo inesperado. Porque os papas não nascem papas. É nesses desencontros que se dá o chamamento, é por eles que o Espírito se manifesta, como certeza na contradição. A circunstância, o momento e até o acaso os elegem. Vi, na casa camponesa e pobre em que nascera Angelo Giuseppe Roncali, em Sotto-il-Monte, Bérgamo, Itália, o bilhete ferroviário de volta do Cardeal Patriarca de Veneza, que fora a Roma eleger o sucessor do gélido Pio XII. Descobriu na Capela Sistina que sua viagem era só de ida. Ficou em Roma como papa João XXIII e ali está sepultado como beato. O cardeal Albino Luciani, quando assomou ao balcão, minutos após sua inesperada eleição como João Paulo I, disse assustado: "tive medo". Não fora para ficar.
Francisco é o que será e não apenas o que foi. A circunstância lhe abrirá o caminho desse renascimento. Cada papa se realiza em seu percurso, que é muito mais o da circunstância da História do que o da pessoa. De qualquer modo, leva consigo a herança de uma biografia que o ilumina ou persegue em sua nova identidade. Bergoglio é um cardeal de trajetória diferente: nascido e criado em cortiço, filho de ferroviário, estudou química antes da opção sacerdotal, namorou uma vizinha, lê Dostoiévski, faz sua própria comida, desloca-se em transporte público e esteve do lado errado durante a ditadura. Enfim, tem seus defeitos, o que deve ajudá-lo no destino que o surpreendeu, o de pastor do reencontro da Igreja com sua missão profética.
A adoção do nome do pobre de Assis é coerente com seu modo de vida franciscano. Sugere um retorno ao franciscanismo, à opção pelos pobres. No gesto promissor de inclinar a cabeça e pedir que o povo da praça orasse por ele, para que fosse abençoado, compartilhou a função sacerdotal com os fiéis antes de abençoá-los. Indica, assim, sua concepção do sagrado, que pode mudar muita coisa.
Essas reorientações não são escolhas apenas suas. Quando do terremoto de Aquila, Bento XVI ali esteve e foi rezar no túmulo de Celestino V, o papa eremita e pobre que renunciara, escandalizado com os abusos na Igreja, e ali depositou o pálio papal. Uma antecipação fortemente simbólica de sua própria renúncia. Na escolha do Sacro Colégio, é possível ver uma inquietação. No embate entre o monarca e o profeta, entre o poder e o Espírito, aparentemente estamos vivendo mais um episódio histórico do reencontro da Igreja com o sagrado.
O sagrado tem se revelado uma necessidade radical da sociedade contemporânea, sobretudo dos jovens, um atenuante para a brutalidade de um cotidiano demarcado pela anomia e pela alienação. É no espaço do sagrado que, historicamente, o homem tem se encontrado consigo mesmo. Despedaçado e aniquilado pelas irracionalidades e pela materialidade econômica da vida moderna, busca, conservadoramente, no sagrado a inteireza de um renascimento.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, AUTOR,  ENTRE OUTROS LIVROS,  DE A SOCIEDADE VISTA DO ABISMO (VOZES) 

Adiós, amigo


Podestá foi o único bispo a enfrentar o Vaticano para se casar. Bergoglio, hoje papa, foi o único a visitá-lo no leito de morte

17 de março de 2013 | 13h 17
Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
Aos 87 anos, Clelia Luro de Podestá tem uma senhora memória. Vive numa antiga casa de paredes vermelhas na Avenida Gaona, no bairro portenho de Caballito, mesmo endereço que dividiu por mais de 20 anos com Jerónimo Podestá (1920-2000), outrora bispo de Avellaneda e um dos pioneiros no movimento dos sacerdotes casados. Na estante, ela mantém arquivos, cartas, fotografias, livros, lembranças e mais lembranças dos tempos vividos ao lado do obispo obrero desde a década de 1970.
Uma dessas lembranças lhe beliscou a memória nos últimos dias, com a consagração do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. De uma Buenos Aires agitada como em final de Copa do Mundo, Clelia conversou com o Aliás, após uma pequena siesta às 17h de quinta-feira. Com voz firme, palavras breves e silêncios certeiros, pediu-me apenas para hablar fuerte, más fuerte pois não pode ouvir muito bem. Da amizade com o novo pontífice, conta: "Conheci Bergoglio em 2000, em Buenos Aires. À época, quando Jerónimo estava internado no hospital San Camilo, muitos bispos e padres se distanciaram. O único religioso, absolutamente o único, a visitá-lo foi o cardeal Bergoglio, que lhe rezou a unção dos enfermos." Quinze dias depois, Podestá morreu. "E Bergoglio me acompanhou por todos esses anos." Acompanhou como? "Ora, que pergunta, como se acompanha alguém que está com dor, que está com vontade de chorar? Ele me escutou, me deu conselhos, me ligou. Foi um amigo. Não é fácil perder um companheiro, como perdi Jerónimo. Bergoglio me ajudou a continuar caminhando", diz.
Após a morte de Podestá, Bergoglio ainda foi um dos poucos clérigos a reconhecer publicamente suas contribuições à igreja argentina. Nascido em Ramos Mejía, Jerónimo estudou em Roma e La Plata, aderiu ao movimento Sacerdotes del Tercer Mundo e participou das sessões do Concílio Vaticano II. Era considerado um religioso progressista. Para muitos, um revolucionário.
Em 1966, conheceu Clélia, uma bela mulher de 39 anos, divorciada, mãe de seis filhas, que dedicara dez anos ao povo indígena do Ingenio San Martín Tabacal, no norte de Salta. "Não era religiosa. Mas logo me tornei a companheira de luta de Jerónimo. Lutávamos para mudar o mundo. Lutávamos por paz e justiça. E decidimos caminhar juntos", lembra Clelia, que inicialmente era secretária e confidente do bispo. A certo ponto, decidiram viver um amor "místico": platônico, mas à vista de todos. Consideravam esse sentimento uma "graça" de Deus, a que não poderiam renunciar.
Determinado a defender esse amor, Podestá foi à Roma, para conversar com Paulo VI. Nada feito. O papa lhe disse para esquecer Clelia, ordem a que o bispo simplesmente respondeu: "O senhor não pode me pedir para arrancar nenhum sentimento do meu coração. Pode me pedir que não faça escândalo, o que não faço. Quem está fazendo escândalo são vocês." Podestá voltou a Buenos Aires e depois revoltou a Roma - desta vez, com Clelia. Queria apresentá-la ao cardeal Giovanni Benelli (1921-1982), à época secretário de Estado do Vaticano. Sem hesitar, Clelia discutiu o papel das mulheres na Igreja com Benelli. "Estávamos no Vaticano, mas sinto que todos nós, seres humanos, somos iguais. Do padeiro ao papa, somos iguais", disse, certa vez, sobre o encontro. No fim, nada feito, mais uma vez.
Em 1972, Jerónimo Podestá recebeu a suspensão ad divinis, do alto da Santa Sé. "Mas ele nunca renunciou. Nunca", ressalta a fiel companheira. Eis que, ainda em 1972, enamorados, Clelia e Podestá se casaram, com a bênção do brasileiro Dom Helder Câmara. Em 1974, o casal se viu obrigado a partir para o exílio, após receber ameaças de morte da Alianza Anticomunista Argentina, a Triple A, pelo apoio a marginalizados e jovens militantes nas décadas de 1960 e 1970. Primeiro destino: Roma, por supuesto, onde pretendiam delatar os descalabros que aconteciam na ditadura militar argentina (1966-1983). Mais uma vez, nada feito. "Roma ficou em silêncio." Segundo destino: Peru, onde viveram por seis anos.
De volta à Argentina, passados os anos de chumbo, Clelia e Podestá retomaram a marcha, principalmente relacionada ao movimento mundial dos sacerdotes casados. Entre 1984 e 1999, rodaram a América Latina, além de países europeus como Holanda, Itália e Inglaterra, para fortalecer o movimento. "Encontrei minha diocese: a diáspora", dizia Podestá. Após sua morte, Clelia se dedicou a cuidar do legado do marido. Presidente vitalícia da Federación Latinoamericana para los Nuevos Ministerios, publicou Jerónimo Podestá: un obispo sin fronteras (Ciccus) e Jerónimo obispo, un hombre entre los hombres (Ediciones Fabro), entre outros livros.
Volto aos 87 anos de Clelia Luro. Lúcida e politizada, a viúva do padre publicou marcantes cartas abertas nos últimos tempos. Uma de 30 de janeiro, destinada a Bento XVI (doze dias antes de sua renúncia), com críticas às sanções religiosas à liberdade e aos direitos humanos. "Por que escrevi? Porque quis. Sentia que Bento XVI deveria sair, para abrir um novo momento para a Igreja." Outra de 4 de março, endereçada os cardeais presentes no conclave, revisita uma carta de 1978 assinada por ela e Podestá, momento em que se discutia o sucessor de Paulo VI. "Queremos um lutador pela justiça e pela paz, que promova a liberação dos homens sem o temor da perseguição. Queremos um homem de coração aberto e espírito amplo, capaz de compreender e amar os homens e o mundo de hoje, disposto a fazer a Igreja entrar na corrente viva da história. Um homem de dimensão ecumênica, decidido a fazer efetivas as esperanças que promoveu o Concílio Vaticano II", dizia a correspondência.
Francisco, o 266° homem a ocupar o trono de Pedro, é o cara para Clelia. "Enérgico, forte e humilde, ele será um novo João XXIII para a Igreja. Abrirá as portas do Vaticano", diz ela. Se arrisco questionar o papel do cardeal durante a ditadura, ela logo interrompe: "Isso é mentira da imprensa!" (Na sexta, também o Vaticano frisou que o papa nunca colaborou com os militares).
E Bergoglio concordava com o casamento de Podestá? "Ya lo verás con el tiempo", Clelia diz. Otimista, pois? "Totalmente."

Showgamentos


Túlio Vianna
O processo de espetacularização do Poder Judiciário brasileiro tornou-se evidente com a transmissão ao vivo do júri do caso Mércia Nakashima. A sobriedade e a temperança que deveriam estar presentes em todo julgamento vêm sendo abandonadas para dar espaço a uma esportização da Justiça, na qual há um time para o qual se deve torcer – quase sempre a acusação – e outro que se deve odiar, a defesa.
O júri é pop. Clientes de uma padaria em Guarulhos acompanham o julgamento de Mizael Bispo - Werther Santana/Estadão
Werther Santana/Estadão
O júri é pop. Clientes de uma padaria em Guarulhos acompanham o julgamento de Mizael Bispo
O interacionismo simbólico já demonstrou que seres humanos agem de formas diferentes conforme as interações sociais a que estão submetidos no momento. A performance de um time de futebol jogando em casa é diferente de quando joga no campo do adversário. As pessoas também se comportam de maneiras diferentes quando almoçam sozinhas, com a família, com os amigos, com o chefe ou em um encontro a dois. Em suma: assumem papéis diferentes conforme quem os esteja observando. De todos os olhares que modificam o comporatamento humano, o da câmera talvez seja o mais significativo. A experiência de estar sendo observado por um número indefinido de pessoas que poderão rever aquelas imagens variadas vezes torna quem está sendo filmado bastante vulnerável ao julgo alheio.
Nos julgamentos pelo tribunal do júri, cabe a sete jurados que não precisam ter qualquer formação jurídica, decidirem se o acusado é culpado ou inocente. A maioria deles não tem qualquer experiência em participações na TV e sabe que em regra o público deseja que se condene o réu. Sabe também que, caso absolva, sua imagem poderá estar no dia seguinte no Facebook em algum tipo de protesto contra a impunidade. E, como ser humano que é, teme sair mal na foto.
Também o réu e as testemunhas em regra não têm experiência na TV ou mesmo em falar em público. E são constrangidos a narrarem os fatos na frente das câmeras. O acusado passa então a tentar convencer da sua inocência não só os sete jurados, mas um número indefinido de telespectadores que decidem descompromissadamente em suas casas se ele é culpado ou inocente. As testemunhas, por outro lado, são colocadas no dilema de desagradar o público (ia escrevendo torcedores, mas refreei-me a tempo) com uma versão benéfica ao réu ou sustentar uma versão favorável à acusação, mesmo sabendo que o réu poderá assistir posteriormente aquelas imagens infinitas vezes para alimentar seu desejo de vingança.
Finalmente, o juiz, o promotor e os advogados também estão sujeitos às pressões do olhar do público e passam a representar papéis como o do "juiz austero", o do "promotor implacável" e o do "advogado combativo", com a intenção de se promoverem perante a opinião pública. A racionalidade do Direito, que deveria pautar o julgamento para condenar o culpado ou absolver o inocente, cede espaço à teatralização cujo objetivo primordial é "dar satisfação à sociedade".
As transmissões ao vivo dos julgamentos do STF pela internet já deram provas de como a opinião pública interfere no comportamento dos julgadores. As decisões do STF, porém, afetam direta ou indiretamente a vida de todos os cidadãos brasileiros e há um inequívoco interesse público em acompanhá-las, o que justifica a necessidade de suas transmissões. Além do mais, espera-se que os onze ministros do STF tenham suficiente maturidade para saber se distanciar da vontade popular e decidir conforme o Direito e a Constituição, até por terem formação intelectual para isso, além das demais garantias inerentes ao cargo.
Os julgamentos do tribunal do júri sempre foram públicos e qualquer pessoa interessada sempre pôde assisti-los bastando para isso dirigir-se ao fórum, o que é muito diferente de se transmiti-lo ao vivo pela internet para milhares de curiosos. Quem dedica seu tempo a ir ao fórum assistir a um júri tem algum interesse real nele, seja por parentesco ou amizade com algum dos envolvidos ou qualquer outro vínculo com o caso. Quem assiste a um júri pela internet, na maioria dos casos, é um mero curioso que acompanhou o caso pela imprensa e formou uma opinião apressada, sem nunca ter avaliado diretamente as provas. E é esta opinião apressada, mas tão convicta quanto o amor devotado a seu time de futebol que, em última análise, irá influenciar a decisão dos jurados a condenar o réu.
Se o interesse da decisão do caso é limitado ao acusado, à vítima e a seus familiares não há porque submetê-los aos olhares de curiosos sem qualquer compromisso com uma decisão conforme a lei.
Julgamentos não são jogos a serem transmitidos para entreter os telespectadores. Nem um novo tipo de espetáculo, que poderíamos chamar de "showgamento", que combina o melhor do esporte e do teatro em um único show ao vivo cujo final é decidido pelos aplausos de quem assiste. A espetacularização do Direito só afasta os jurados de decisões racionais próprias de um julgamento ponderado e os conduz a decisões emocionais que criam finais felizes para os espectadores, mas nem sempre justos para o réu.
TÚLIO VIANNA É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)