quarta-feira, 20 de março de 2013

Adiós, amigo


Podestá foi o único bispo a enfrentar o Vaticano para se casar. Bergoglio, hoje papa, foi o único a visitá-lo no leito de morte

17 de março de 2013 | 13h 17
Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
Aos 87 anos, Clelia Luro de Podestá tem uma senhora memória. Vive numa antiga casa de paredes vermelhas na Avenida Gaona, no bairro portenho de Caballito, mesmo endereço que dividiu por mais de 20 anos com Jerónimo Podestá (1920-2000), outrora bispo de Avellaneda e um dos pioneiros no movimento dos sacerdotes casados. Na estante, ela mantém arquivos, cartas, fotografias, livros, lembranças e mais lembranças dos tempos vividos ao lado do obispo obrero desde a década de 1970.
Uma dessas lembranças lhe beliscou a memória nos últimos dias, com a consagração do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. De uma Buenos Aires agitada como em final de Copa do Mundo, Clelia conversou com o Aliás, após uma pequena siesta às 17h de quinta-feira. Com voz firme, palavras breves e silêncios certeiros, pediu-me apenas para hablar fuerte, más fuerte pois não pode ouvir muito bem. Da amizade com o novo pontífice, conta: "Conheci Bergoglio em 2000, em Buenos Aires. À época, quando Jerónimo estava internado no hospital San Camilo, muitos bispos e padres se distanciaram. O único religioso, absolutamente o único, a visitá-lo foi o cardeal Bergoglio, que lhe rezou a unção dos enfermos." Quinze dias depois, Podestá morreu. "E Bergoglio me acompanhou por todos esses anos." Acompanhou como? "Ora, que pergunta, como se acompanha alguém que está com dor, que está com vontade de chorar? Ele me escutou, me deu conselhos, me ligou. Foi um amigo. Não é fácil perder um companheiro, como perdi Jerónimo. Bergoglio me ajudou a continuar caminhando", diz.
Após a morte de Podestá, Bergoglio ainda foi um dos poucos clérigos a reconhecer publicamente suas contribuições à igreja argentina. Nascido em Ramos Mejía, Jerónimo estudou em Roma e La Plata, aderiu ao movimento Sacerdotes del Tercer Mundo e participou das sessões do Concílio Vaticano II. Era considerado um religioso progressista. Para muitos, um revolucionário.
Em 1966, conheceu Clélia, uma bela mulher de 39 anos, divorciada, mãe de seis filhas, que dedicara dez anos ao povo indígena do Ingenio San Martín Tabacal, no norte de Salta. "Não era religiosa. Mas logo me tornei a companheira de luta de Jerónimo. Lutávamos para mudar o mundo. Lutávamos por paz e justiça. E decidimos caminhar juntos", lembra Clelia, que inicialmente era secretária e confidente do bispo. A certo ponto, decidiram viver um amor "místico": platônico, mas à vista de todos. Consideravam esse sentimento uma "graça" de Deus, a que não poderiam renunciar.
Determinado a defender esse amor, Podestá foi à Roma, para conversar com Paulo VI. Nada feito. O papa lhe disse para esquecer Clelia, ordem a que o bispo simplesmente respondeu: "O senhor não pode me pedir para arrancar nenhum sentimento do meu coração. Pode me pedir que não faça escândalo, o que não faço. Quem está fazendo escândalo são vocês." Podestá voltou a Buenos Aires e depois revoltou a Roma - desta vez, com Clelia. Queria apresentá-la ao cardeal Giovanni Benelli (1921-1982), à época secretário de Estado do Vaticano. Sem hesitar, Clelia discutiu o papel das mulheres na Igreja com Benelli. "Estávamos no Vaticano, mas sinto que todos nós, seres humanos, somos iguais. Do padeiro ao papa, somos iguais", disse, certa vez, sobre o encontro. No fim, nada feito, mais uma vez.
Em 1972, Jerónimo Podestá recebeu a suspensão ad divinis, do alto da Santa Sé. "Mas ele nunca renunciou. Nunca", ressalta a fiel companheira. Eis que, ainda em 1972, enamorados, Clelia e Podestá se casaram, com a bênção do brasileiro Dom Helder Câmara. Em 1974, o casal se viu obrigado a partir para o exílio, após receber ameaças de morte da Alianza Anticomunista Argentina, a Triple A, pelo apoio a marginalizados e jovens militantes nas décadas de 1960 e 1970. Primeiro destino: Roma, por supuesto, onde pretendiam delatar os descalabros que aconteciam na ditadura militar argentina (1966-1983). Mais uma vez, nada feito. "Roma ficou em silêncio." Segundo destino: Peru, onde viveram por seis anos.
De volta à Argentina, passados os anos de chumbo, Clelia e Podestá retomaram a marcha, principalmente relacionada ao movimento mundial dos sacerdotes casados. Entre 1984 e 1999, rodaram a América Latina, além de países europeus como Holanda, Itália e Inglaterra, para fortalecer o movimento. "Encontrei minha diocese: a diáspora", dizia Podestá. Após sua morte, Clelia se dedicou a cuidar do legado do marido. Presidente vitalícia da Federación Latinoamericana para los Nuevos Ministerios, publicou Jerónimo Podestá: un obispo sin fronteras (Ciccus) e Jerónimo obispo, un hombre entre los hombres (Ediciones Fabro), entre outros livros.
Volto aos 87 anos de Clelia Luro. Lúcida e politizada, a viúva do padre publicou marcantes cartas abertas nos últimos tempos. Uma de 30 de janeiro, destinada a Bento XVI (doze dias antes de sua renúncia), com críticas às sanções religiosas à liberdade e aos direitos humanos. "Por que escrevi? Porque quis. Sentia que Bento XVI deveria sair, para abrir um novo momento para a Igreja." Outra de 4 de março, endereçada os cardeais presentes no conclave, revisita uma carta de 1978 assinada por ela e Podestá, momento em que se discutia o sucessor de Paulo VI. "Queremos um lutador pela justiça e pela paz, que promova a liberação dos homens sem o temor da perseguição. Queremos um homem de coração aberto e espírito amplo, capaz de compreender e amar os homens e o mundo de hoje, disposto a fazer a Igreja entrar na corrente viva da história. Um homem de dimensão ecumênica, decidido a fazer efetivas as esperanças que promoveu o Concílio Vaticano II", dizia a correspondência.
Francisco, o 266° homem a ocupar o trono de Pedro, é o cara para Clelia. "Enérgico, forte e humilde, ele será um novo João XXIII para a Igreja. Abrirá as portas do Vaticano", diz ela. Se arrisco questionar o papel do cardeal durante a ditadura, ela logo interrompe: "Isso é mentira da imprensa!" (Na sexta, também o Vaticano frisou que o papa nunca colaborou com os militares).
E Bergoglio concordava com o casamento de Podestá? "Ya lo verás con el tiempo", Clelia diz. Otimista, pois? "Totalmente."

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