Túlio Vianna
O processo de espetacularização do Poder Judiciário brasileiro tornou-se evidente com a transmissão ao vivo do júri do caso Mércia Nakashima. A sobriedade e a temperança que deveriam estar presentes em todo julgamento vêm sendo abandonadas para dar espaço a uma esportização da Justiça, na qual há um time para o qual se deve torcer – quase sempre a acusação – e outro que se deve odiar, a defesa.
Werther Santana/Estadão
O júri é pop. Clientes de uma padaria em Guarulhos acompanham o julgamento de Mizael Bispo
O interacionismo simbólico já demonstrou que seres humanos agem de formas diferentes conforme as interações sociais a que estão submetidos no momento. A performance de um time de futebol jogando em casa é diferente de quando joga no campo do adversário. As pessoas também se comportam de maneiras diferentes quando almoçam sozinhas, com a família, com os amigos, com o chefe ou em um encontro a dois. Em suma: assumem papéis diferentes conforme quem os esteja observando. De todos os olhares que modificam o comporatamento humano, o da câmera talvez seja o mais significativo. A experiência de estar sendo observado por um número indefinido de pessoas que poderão rever aquelas imagens variadas vezes torna quem está sendo filmado bastante vulnerável ao julgo alheio.
Nos julgamentos pelo tribunal do júri, cabe a sete jurados que não precisam ter qualquer formação jurídica, decidirem se o acusado é culpado ou inocente. A maioria deles não tem qualquer experiência em participações na TV e sabe que em regra o público deseja que se condene o réu. Sabe também que, caso absolva, sua imagem poderá estar no dia seguinte no Facebook em algum tipo de protesto contra a impunidade. E, como ser humano que é, teme sair mal na foto.
Também o réu e as testemunhas em regra não têm experiência na TV ou mesmo em falar em público. E são constrangidos a narrarem os fatos na frente das câmeras. O acusado passa então a tentar convencer da sua inocência não só os sete jurados, mas um número indefinido de telespectadores que decidem descompromissadamente em suas casas se ele é culpado ou inocente. As testemunhas, por outro lado, são colocadas no dilema de desagradar o público (ia escrevendo torcedores, mas refreei-me a tempo) com uma versão benéfica ao réu ou sustentar uma versão favorável à acusação, mesmo sabendo que o réu poderá assistir posteriormente aquelas imagens infinitas vezes para alimentar seu desejo de vingança.
Finalmente, o juiz, o promotor e os advogados também estão sujeitos às pressões do olhar do público e passam a representar papéis como o do "juiz austero", o do "promotor implacável" e o do "advogado combativo", com a intenção de se promoverem perante a opinião pública. A racionalidade do Direito, que deveria pautar o julgamento para condenar o culpado ou absolver o inocente, cede espaço à teatralização cujo objetivo primordial é "dar satisfação à sociedade".
As transmissões ao vivo dos julgamentos do STF pela internet já deram provas de como a opinião pública interfere no comportamento dos julgadores. As decisões do STF, porém, afetam direta ou indiretamente a vida de todos os cidadãos brasileiros e há um inequívoco interesse público em acompanhá-las, o que justifica a necessidade de suas transmissões. Além do mais, espera-se que os onze ministros do STF tenham suficiente maturidade para saber se distanciar da vontade popular e decidir conforme o Direito e a Constituição, até por terem formação intelectual para isso, além das demais garantias inerentes ao cargo.
Os julgamentos do tribunal do júri sempre foram públicos e qualquer pessoa interessada sempre pôde assisti-los bastando para isso dirigir-se ao fórum, o que é muito diferente de se transmiti-lo ao vivo pela internet para milhares de curiosos. Quem dedica seu tempo a ir ao fórum assistir a um júri tem algum interesse real nele, seja por parentesco ou amizade com algum dos envolvidos ou qualquer outro vínculo com o caso. Quem assiste a um júri pela internet, na maioria dos casos, é um mero curioso que acompanhou o caso pela imprensa e formou uma opinião apressada, sem nunca ter avaliado diretamente as provas. E é esta opinião apressada, mas tão convicta quanto o amor devotado a seu time de futebol que, em última análise, irá influenciar a decisão dos jurados a condenar o réu.
Se o interesse da decisão do caso é limitado ao acusado, à vítima e a seus familiares não há porque submetê-los aos olhares de curiosos sem qualquer compromisso com uma decisão conforme a lei.
Julgamentos não são jogos a serem transmitidos para entreter os telespectadores. Nem um novo tipo de espetáculo, que poderíamos chamar de "showgamento", que combina o melhor do esporte e do teatro em um único show ao vivo cujo final é decidido pelos aplausos de quem assiste. A espetacularização do Direito só afasta os jurados de decisões racionais próprias de um julgamento ponderado e os conduz a decisões emocionais que criam finais felizes para os espectadores, mas nem sempre justos para o réu.
TÚLIO VIANNA É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)
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