domingo, 2 de dezembro de 2012

ANS vai julgar cobrança de ‘taxa extra’ para médico acompanhar parto normal


Lígia Formenti / BRASÍLIA
BRASÍLIA - Considerada um direito pelos médicos, um abuso pelos advogados e uma violência por algumas gestantes, a exigência de uma "taxa extra" por obstetras de planos de saúde para acompanhar o parto normal será julgada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A prática, que até agora permanecia na "informalidade", deverá ser discutida na próxima reunião da diretoria.
Diabética, Bárbara aceitou passar por cesárea após ouvir vários médicos - Andre Dusek/Estadão
Andre Dusek/Estadão
Diabética, Bárbara aceitou passar por cesárea após ouvir vários médicos
Entre os documentos analisados está o parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), encomendado pela própria agência. Para o colegiado, a prática não fere a ética, traz uma alternativa para a baixa remuneração oferecida pelos planos de saúde e poderia ajudar o País a reduzir o número de cesarianas. Em 2011, 83% dos nascimentos feitos na assistência suplementar foram por meio de cesáreas.
Mulheres que gostariam de experimentar o parto normal hoje se queixam que o tipo de parto é definido pelo bolso e não pelas suas condições de saúde. Quando podem pagar a mais, o médico do plano se "dispõe" a acompanhar o parto natural. Se não têm dinheiro, a cesárea é marcada já nas primeiras consultas do pré-natal. Não importa a idade da paciente, se já teve filhos ou se ela reúne condições que permitem o parto normal.
"Eles argumentam que com cesárea tudo pode ser programado. Não perdem o fim de semana, não precisam desmarcar consultas de consultório nem ficar horas esperando um parto apenas", relata a chefe de cozinha Bruna Trieto.
Mãe de dois filhos - ambos por parto normal -, ela conta que preferiu não correr risco. "Procurei um profissional de confiança. A impressão que tenho é de que muitos médicos até dizem que fazem o parto normal, mas quando chega a hora arrumam qualquer desculpa para logo indicar a cesárea."
A desconfiança também acompanhou a servidora pública Bárbara Rangel, de 33 anos. A médica que a atendia dizia ser mais prudente fazer a cesárea, porque Bárbara é diabética. "Somente me convenci quando conversei com outros médicos, já no fim da gravidez", conta.
O parecer do CFM determina que o acordo por escrito entre gestante e médico seja feito ainda na primeira consulta. O trato garantiria à gestante o direito de ser acompanhada das primeiras contrações até o nascimento. Segundo o secretário do CFM, Gerson Zafalon, operadoras não pagam pelo acompanhamento, apenas pelo parto. Ele argumenta ainda que o valor extra poderia ser, num segundo momento, reembolsado pelas empresas de saúde. A proposta, no entanto, é criticada por sociedades estaduais.
"Impossível separar o acompanhamento do parto. É uma coisa só", afirma o presidente da Associação de Obstetrícia e Ginecologia de São Paulo (Sogesp), Cesar Eduardo Fernandes. Ele defende, no entanto, a criação de uma alternativa para os baixos rendimentos do médico. "O obstetra é como um profissional qualquer: não pode trabalhar de graça. Se a paciente quer que seu médico faça o parto, pela sua disponibilidade, isso precisa ser ressarcido."
Ética. A gerente-geral de regulação assistencial da ANS, Martha Oliveira, conta que a agência decidiu analisar a cobrança da taxa extra depois de ser várias vezes questionada. "Não podemos falar sobre a ética, daí o pedido de parecer feito pelo CFM. A partir de agora, o que será visto é: a disponibilidade do médico, a presença no parto é coberta pelos serviços?" Martha diz que o plano é obrigado a garantir para a gestante o atendimento pré-natal, o acompanhamento e o parto. Não há, porém, nada explícito que garanta à paciente o direito de ser atendida pelo médico que acompanhou sua gestação. "A operadora tem de garantir a vaga, o profissional, mas não necessariamente o mesmo."
A diretora de atendimento da Fundação Procon São Paulo, Selma do Amaral, diz que nada garante à paciente que operadoras farão o reembolso do extra pago para o médico. "Não há nada que indique esse direito. Isso pode causar uma grande confusão e, pior, um grande prejuízo para os consumidores." A Federação de Saúde Suplementar, em nota, disse que reembolsos são feitos apenas para procedimentos previstos pela ANS.
Além de considerar a exigência abusiva, a advogada especialista na área de saúde Renata Vilhena diz ter dúvidas sobre a eficácia da medida para reduzir os indicadores de cesárea. "Pelo contrário, ‘oficializando’ a prática, somente gestantes com mais recursos poderiam fazer o parto normal", afirma.
 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Shows cancelados, ingressos encalhados, festivais desaparecidos: é crise?


Jotabê Medeiros - O Estado de S. Paulo
Cancelamento do show da cantora Fiona Apple. Cancelamento do set de will.i.am na abertura de Madonna. Cancelamento do show do Sublime with Rome. Cancelamento do concerto do Coldplay, três dias após o anúncio da turnê.
Promoção de ingressos para lotar o Morumbi contrasta com filas para turnê de 2008 - Efe
Efe
Promoção de ingressos para lotar o Morumbi contrasta com filas para turnê de 2008
Lady Gaga vendendo apenas metade dos ingressos disponíveis para seus shows no Brasil. E, mais recentemente, um baque no orgulho da Rainha do Pop: Madonna desembarcou nesta sexta-feira, 30, no Brasil para a 77ª apresentação da MDNA Tourfazendo uma insólita promoção de entradas - preço do ingresso para seu show caiu pela metade. Em sua última visita, houve filas homéricas e os ingressos tinham se esgotado em 24 horas.
A bruxa anda solta no reino do show biz. Após anos de euforia no setor - e do estabelecimento de três gigantes da área no Brasil, a T4F, a Geo Eventos e a XYZ Live -, o mercado vê um recuo nas pretensões de expansão. Festivais que chegaram a reunir 179 mil pessoas, como o SWU, sumiram da grade de programação do ano (ao Estado, os organizadores garantiram essa semana que deve voltar). Observadores já anteveem uma crise na área.
O primeiro grande show do ano, o de Bob Dylan, em abril, já demonstrava que haveria sinais de fadiga na relação fã-ídolo. No Rio de Janeiro, a casa de espetáculos Citibank Hall, que abrigou o show do cantor, vendia ingressos a até R$ 900. Resultado: o local estava somente com dois terços de sua capacidade ocupados (o ingresso mais barato estava a R$ 500).
No dia 9 de novembro, no Rio de Janeiro, Lady Gaga demonstrou não ser totalmente alienada à situação do show biz. "Eu sei o quanto são caros os ingressos do meu show. Eu agradeço aos que vieram, gastaram seu dinheiro e pagaram esse preço", afirmou a cantora, durante sua apresentação no Parque dos Atletas. O show recebeu cerca de 40 mil pessoas (inicialmente, a empresa promotora esperava 90 mil), público que só foi possível após uma promoção relâmpago que dava direito a comprar um ingresso e levar outro de presente.
Foi na América do Norte que se fizeram sentir os primeiros sintomas de que algo vai mal no reino do show biz. Em julho, o balanço do primeiro semestre de shows nos Estados Unidos e Canadá, divulgado em julho pela publicação Pollstar, ligava o sinal de alerta. Ali, apesar de se detectar que havia um crescimento do faturamento nos shows (de 1,2% sobre o mesmo período do ano anterior), o Pollstar detectara ter havido também queda de 9,4% no preço médio do ingresso (o mais baixo desde 2007).
Ou seja: as empresas norte-americanas de shows já tinham "calibrado" seus preços e aumentado o número de cidades em que seus artistas fariam shows. "A indústria aparenta ter feito alguns ajustes bem-sucedidos, e que melhor refletem as realidades econômicas atuais", analisou Gary Bongiovanni, editor-chefe do site Pollstar. "Colocando de forma simples, os preços dos ingressos baixaram e o tamanho das turnês aumentaram. Para manter os ganhos, muitos artistas estão fazendo mais shows. O Top 100 das turnês na América do Norte mostra um total combinado de 2.822 cidades, o que representa 17,4% acima do número de 2011; foram incluídas 420 novas cidades".
O mercado nacional precisa achar sua própria fórmula de sobrevivência se quiser continuar crescendo - e fazendo a América Latina crescer. O Brasil é responsável por 76% do mercado de shows internacionais, ante 16% da Argentina e 8% do Chile. Para a maior empresa do ramo, a T4F, o ano de 2011 foi de recordes: realizou 396 apresentações de música ao vivo, com mais de 2 milhões de ingressos vendidos (um crescimento de 14% sobre as 348 apresentações e 1,8 milhão de ingressos de 2010). Os números de 2012 não estão fechados, mas não devem repetir o êxito.
A empresa XYZ Live realizou no mês passado o show do Kiss com público razoável (mas não com o Anhembi lotado). O Kiss, há pouco tempo, colocou 40 mil no mesmo local, e agora só reuniu 25 mil pessoas. Mas a empresa está longe de se ressentir de crise: fez uma turnê bem-sucedida de J-Lo (e outra centena de espetáculos) este ano e já possui mais de 100 funcionários e 2 mil colaboradores.
O panorama de inflação nos preços de ingressos já tinha sido apontado em reportagem do Estado em 2008, sob o título Chuva de Cifrões. Levantamento feito pela reportagem, comparando preços de 1998 e 2008, mostrava que os preços dos ingressos para shows internacionais de rock e pop no Brasil tinham explodido nos últimos 10 anos, chegando a ter, em média, um valor quatro vezes superior ao que era praticado em 1998.
O cenário que havia (e que se consolidou em quatro anos), era o seguinte: a situação falimentar da indústria fonográfica gerou uma necessidade de diversificação no mundo da música; empresários migraram para o entretenimento ao vivo, que se constituiu num novo mercado; as antigas gravadoras passaram a usar recursos maciços para promover turnês; e o show passou a ser a principal fonte de renda para o artista, que não vende mais discos (artistas de maior fama, como Lady Gaga e Katy Perry, também emprestam o nome para linhas de perfume e moda).
Para o público, no entanto, nada muda: o que se vê é um cenário de aviltamento do mercado. Há ainda, em especial no Brasil, as condições externas ao concerto complicando tudo. Shows no Morumbi, por exemplo, são palco de abuso de preços de estacionamentos, táxis, alimentação, segurança. O fã acaba desanimando.
Há ainda uma teoria generalizada de que a chegada do gigante Lollapalooza, festival norte-americano que se instalou no ano passado no Brasil, fez minguar o cardápio de artistas para festivais menores, como o Planeta Terra. Sintoma da livre concorrência, isso pode levar a uma "atrofia" dos pequenos no País, limitados a um leque de artistas "menores", segundo disse ao Estado um produtor que não quis se identificar. Por outro lado, também pode obrigar ao uso da imaginação na escalação de bandas - em vez de escolher o hype, produtores darão mais atenção à qualidade e investirão em nomes que não são consagrados, mas podem surpreender.
Claro que nem todos os cancelamentos de shows no Brasil este ano se devem a um recuo em relação às condições dos shows na América Latina. A cantora Fiona Apple não veio por causa de sua cadela Janet, de 13 anos, que estava em estado terminal. "Não posso ir à América do Sul. Não agora", escreveu Fiona em seu blog. No mês passado, ela se apresentaria em Porto Alegre (dia 27), São Paulo (dia 29) e Rio de Janeiro (dia 30).
O grupo britânico Coldplay chegou a anunciar seu retorno ao Brasil para o próximo ano, com dois shows (no Estádio do Morumbi, São Paulo, e no Estádio do Zequinha, Porto Alegre), parte da divulgação do disco Mylo Xyloto. Três dias após esse anúncio, o grupo britânico cancelou sua turnê latino-americana, alegando problemas internos no grupo e informando que ficará 3 anos sem excursionar. "Com muitíssimo pesar, nos vemos forçados a postergar nossa turnê recém-anunciada devido a circunstâncias imprevistas", disse comunicado da banda.
  

Um homem é homem



DE SÃO PAULO
Eugênio Hirsch, nascido na Áustria, mas vivido na Argentina e, mais tarde, no Brasil, era um artista gráfico de prestígio mundial, responsável pelos catálogos de alguns dos museus mais importantes da Europa e capista de grandes editoras internacionais.
Era um mestre na arte visual. Sua capa para a edição brasileira de "Lolita", publicada pela antiga Civilização Brasileira, ganhou o prêmio internacional e foi consagrada pelo próprio Nabokov, que a considerou a melhor interpretação de sua personagem, superando até mesmo o filme de Stanley Kubrick baseado em seu romance.
Durante os anos em que viveu no Rio, casou-se com uma negra escultural da qual ele nem sabia o nome, tratando-a simplesmente de Azeitona, pela cor aveludada de sua pele extraordinária.
Um amigo perguntou se era verdade que ele havia se casado com uma negra. Hirsch respondeu na bucha: "Não, eu me casei com uma mulher". Este caso teve um replay de outro amigo meu, que se casou com uma judia. Perguntado se era verdade, ele respondeu: "Não. Casei-me com uma mulher".
Relembro os dois casos toda vez que fazem referência ao ministro Joaquim Barbosa, considerado o primeiro negro a ocupar a presidência do Supremo Tribunal Federal. Pensando bem, é um resquício quase inocente do preconceito racista, negado veementemente pelos nossos sociólogos e demais entendidos, mas existente na prática sob diversas formas, algumas delas até que inocentes.
O ministro é, acima de tudo, um cidadão como outro qualquer, não deve o cargo que ocupa atualmente a uma cota racial, é um brasileiro nascido em Paracatu, que se destacou no ofício que escolheu e para o qual se preparou ao longo da vida, vencendo dificuldades que, de uma forma geral, todos nós enfrentamos, uns mais, outros menos, no desafio clássico do "struggle for life", a luta pela vida.
Se há um povo que não tem necessidade de rotular seus filhos pelas características raciais, esse povo é o brasileiro, formado e formatado pela miscigenação do branco europeu, do negro africano e do índio nativo. Gobineau e Chamberlain abasteceram os nazistas e os demais racistas, condenando a mistura do sangue como o maior inimigo do gênero humano.
No caso brasileiro, apesar da discriminação que ainda existe, embora atenuada em relação a outros tempos (fomos o último país a abolir a escravidão), há motivos de sobra para não nos admirarmos quando um negro ou afrodescendente (detesto essa classificação pretensamente correta) ocupa na sociedade o lugar que mereceu.
Basta citar que três dos nossos maiores artistas foram negros: Aleijadinho, na escultura, Machado de Assis, na literatura, e padre José Maurício, na música erudita. Isso sem falar na arte dita popular, bastando citar Pixinguinha, sem falar em vultos históricos como José do Patrocínio, Cruz e Souza, André Rebouças, em nossos atletas e artistas em todos os setores.
Não constituem uma exceção, são produtos naturais daquilo que podemos chamar de "civilização". Claude Lévi-Strauss fez um diagnóstico cruel de nossa formação social, dizendo que o Brasil começou na barbárie pré-colombiana e passou para a decadência, sem conhecer o largo e profundo estágio da civilização propriamente dita. Daí o adjetivo que usou para nomear seu livro mais famoso: "Tristes Trópicos".
Em termos europeus, ele podia ter razão: os bárbaros atravessaram um largo período histórico de civilização (incluindo a Idade Média) para chegarem a uma potencial decadência cujos sintomas atualmente começam a se manifestar de forma algumas vezes dramática.
E para recuar ainda mais a constatação da negritude como elemento civilizatório, lembrarei aquele hino atribuído a Salomão: "Nigra sum sed formosa, ideo dilexit me Rex et introduxit me in cubiculum suum" (Sou negra, mas formosa, por isso o rei me amou e me introduziu em seu cubículo).
Na realidade, o rei não introduziu uma negra em sua alcova. Introduziu uma mulher que lhe deu prazer e descendência.
Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000. Sua carreira no jornalismo começou em 1952 no "Jornal do Brasil". É autor de 15 romances e diversas adaptações de clássicos.