terça-feira, 5 de julho de 2011

Fernando Henrique: pensamento e ação


Celebração de seus 80 anos lembra que sua atuação na política significou começo da abertura de novos caminhos para a sociedade brasileira

03 de julho de 2011 | 0h 00
Francisco C. Weffort - O Estado de S.Paulo
A celebração dos 80 anos de Fernando Henrique Cardoso ocorre num bom momento da história da democracia que ele ajudou a construir como líder partidário, senador e presidente. Ajudou a construí-la também em sua atividade como pesquisador, professor e em sua militância jornalística, partes relevantes de uma trajetória brilhante nos céus nem sempre azuis da historia brasileira. No seu caminho estava a democracia, a ditadura e, de novo, a democracia, onde felizmente nos encontramos agora.
Na passagem de um período a outro, os homens de bem estavam procurando ansiosamente o melhor caminho. Fernando Henrique foi um deles. Foi e continua sendo um deles, e dos mais importantes.
Quase sempre nos escapa a significação histórica de pessoas muito próximas de nós. Nunca é fácil passar da biografia à Historia, mas quando se trata de amigos é ainda mais difícil. Daí que talvez haja que recorrer ao olhar dos que por se acharem um pouco mais distantes possam ver melhor. Nas preliminares da primeira disputa entre Fernando Henrique e Lula, eu me encontrei, por acaso, em uma sala de espera de aeroporto, com Juan Carlos Portantiero, historiador e sociólogo argentino. Juan Carlos saíra há poucos anos de uma experiência de colaboração no governo Raul Alfonsin que, como sabemos, não terminou muito bem. E como é de praxe entre sociólogos, aproveitamos a ocasião para especular sobre a significação histórica do momento em nossos países. Eu estava numa fase em que via no Brasil mais problemas do que soluções. Meu amigo não via muitos detalhes da situação, mas tinha mais esperanças. Lá, pelas tantas, ainda em pleno debate, mas quando já se apressava para se dirigir a seu voo, ele despediu-se com esta: "Dejemonos de cuentos Francisco, una pelea entre Fernando y Lula, eso en America Latina es un lujo." Portantiero viu, com antecedência, um significado geral naquela "pelea" que só depois ficou claro para mim.
Em 1995, eu tentei em um artigo ressaltar a dimensão maior daquelas eleições que me pareceram o começo da nossa segunda revolução democrática depois de 1930. É claro, tudo começou quando Fernando Henrique dirigiu o Plano Real, ainda no governo Itamar Franco. E a palavra revolução é, certamente, inusitada quando se faz em meio a instituições existentes e a eleições. Mas a Lei de responsabilidade Fiscal, as privatizações, a derrubada de uma parte importante do patrimonialismo brasileiro, me pareciam indicações nesse sentido. Naquele momento, porém, à parte o Plano Real, por seus efeitos na estabilidade monetária e nos benefícios concedidos a amplas massas da população, estas iniciativas eram apenas sinais. Sinais que, paradoxalmente, só foram confirmados em sua significação mais geral quando se verificou que a direção aberta por Fernando foi seguida por Lula. A história brasileira havia tomado, de fato, um novo rumo.
Ainda em 1995, numa reunião de intelectuais em Brasília, iniciativa de Luciano Martins, apresentei a mesma ideia numa conversa rápida com Adam Przeworski, da Universidade de Chicago. Mas Adam torceu o nariz. Para ele, polonês e herdeiro de uma historia de grandes convulsões, revolução, mesmo democrática, é outra coisa. E ele tinha razão se admitirmos que Europa e America Latina são realidades bastante diferentes. Nestas conversas, quem me passou uma impressão entusiástica foi Osvaldo Sunkel, economista chileno, da CEPAL. Como os chilenos em geral, Osvaldo tinha, mesmo antes da vitoria de Ricardo Lagos, uma aguçada sensibilidade para os requisitos da transição democrática. Depois da tragédia do regime de Pinochet, os chilenos aprenderam, como dizem, a "hilar fino", nos conceitos e na prática.
Os livros e artigos de Fernando Henrique lhe garantiram um merecido reconhecimento nacional e internacional. Sua vasta obra intelectual vem sendo estudada há anos por sua influencia no desenvolvimento da sociologia e da ciência política brasileiras. Mas é bem provável que daqui para diante, sua obra tenha que ser estudada pelos pesquisadores para entendermos melhor o significado da sua presença na História. São poucos os casos de uma conjunção tão completa entre pensamento e ação. A celebração dos seus 80 anos nos lembra que sua atuação na política significou, de fato, o começo da abertura de novos caminhos para a sociedade brasileira. E que as novas interpretações desse novo período estão apenas começando.
CIENTISTA POLÍTICO, EX-MINISTRO DE FHC

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A falsa miséria estatística

Análises meramente econômicas e numéricas ignoram a poderosa tendência do pobre de compartilhar e ajudar

03 de julho de 2011 | 
José de Souza Martins - O Estado de S.Paulo
Nas últimas semanas a opinião pública foi abastecida com indicadores opostos sobre a situação material dos brasileiros. Os dados do Censo de 2010, que balizam as ações do novo programa governamental Brasil sem Miséria, computam 16,267 milhões de miseráveis, 8,5% da população brasileira, uma Holanda inteira, gente cuja renda familiar mensal, quando muito, alcança R$ 70. No interior desse grupo há até os miseráveis dos miseráveis, aqueles cuja renda é de até R$ 39 por mês, pouco mais de R$ 1 por dia, basicamente os tostões que a gente chuta quando caem do bolso furado, aqueles tostões que nem vale a pena curvar-se para recolher. Como há, ainda, os supermiseráveis, os 4,8 milhões de pessoas que no Censo não aparecem com renda alguma.
Aí a coisa se complica. Quem vai acreditar, em sã consciência, que quase 5 milhões de pessoas possam sobreviver sem renda alguma? Posso acreditar que haja pessoas dependentes financeiramente de terceiros, especialmente idosos, doentes e menores, que, não obstante serem de uma família, moram em casa separada da dos provedores. Nesse caso, o dado mostra um defeito na concepção estatística de família e moradia, que não corresponde ao que são numa sociedade de tradições patriarcais, a família como instituição plurilocal baseada numa economia condominial. É preciso não confundir a estatística da miséria com a miséria da estatística.
A secretária para Superação da Extrema Pobreza esclareceu que outras formas de renda não são levadas em conta nesta fase de divulgação do Censo, caso da agricultura de subsistência. Essa forma de renda não é renda. Renda é o ganho que passa pela mediação da forma dinheiro. Portanto, os dados em que vai se basear o programa Brasil sem Miséria já apontam um defeito de compreensão da realidade brasileira que repercutirá na própria concepção das medidas que preconiza. Compreende-se, pois, que, nas representações gráficas dos dados estatísticos, o Norte e o Nordeste constituam um oceano de deplorável miséria. E que o Sul e o Sudeste constituam um oceano de escandalosa prosperidade.
Para compreender essas anomalias estatísticas é preciso levar em conta que a economia brasileira é historicamente uma economia dual. Nem todos dependem de rendimentos monetários para viver. São numerosos, ainda, na roça, aqueles para os quais os ganhos monetários, muito variáveis, aliás, não constituem propriamente o decisivo na sobrevivência da família. Nela a subsistência da família é assegurada prioritariamente pela produção direta dos meios de vida. Então, sim, pode-se entender que uma família até viva sem nenhuma renda monetária nessa economia peculiar que denomino de economia do excedente (e não de subsistência), em que parte da produção própria é consumida em casa e parte é comercializada. Seria ficção medir em dinheiro o que não circulou no mercado.
No lado oposto ao da miséria, a pesquisa da FGV sobre a nova classe média, ou o lado brilhante do pobre, divulgada nessa semana, inunda o cenário com um otimismo numérico luminoso. Se os dados do Censo aqui apontados falam de um Brasil que submerge, os dados sobre a nova classe média dizem que, dentre os países emergentes, o Brasil é o que mais emerge. O grau de felicidade futura do brasileiro indicado pelo Gallup é o maior do mundo. Quem estuda sociologicamente o tema da fé no Brasil tomaria o maior cuidado com essa informação superficial e subjetiva. É que, sendo o brasileiro um povo no geral místico, raramente verbaliza pessimismo que possa indicar falta de fé, na suposição de que inviabiliza aquilo que se espera e deseja.
A criação de quase 800 mil empregos líquidos de janeiro a abril, que a pesquisa menciona, certamente é o melhor fator de otimismo para a nova classe média estatística. Mas é pouco provável que essa parcela da população não tenha tomado consciência, no vivencial, de que desde 2010, no mesmo período, o número de empregos formais venha caindo. Ainda assim, é bom indício de que alguma coisa esteja dando certo na economia, o fato de que os rendimentos dos mais pobres venham crescendo mais do que o PIB nacional. A melhora comparativamente significativa dos seus rendimentos em relação à dos mais ricos, porém, apenas nos indica que, num país com alta proporção de miseráveis, quaisquer R$ 10 podem dobrar a renda de uma família, elevando o índice de sua ascensão estatística. Mas é muito provável que na população mais pobre a melhora tenha seu melhor êxito no fortalecimento do caráter condominial da economia das famílias pobres, que sendo no geral de origem rural, carregam consigo uma poderosa tradição de compartilhar e ajudar. Que as análises meramente econômicas e estatísticas desdenhem esse poderoso traço cultural do pobre, como desdenham a economia do excedente, antes mencionada, empobrece as interpretações porque subestimam um capital cultural decisivo no seu efeito multiplicador nas economias duais como a nossa.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS, SOCIÓLOGO E PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É AUTOR DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO, 2011)



China se apega à riqueza


03 de julho de 2011 | 0h 00
Mario Vargas Llosa - O Estado de S.Paulo
Volto à China depois de cerca de 15 anos e constato que parece outro país. Embora tenha ouvido e lido todos os ditirambos a respeito do seu formidável desenvolvimento econômico, a realidade vai muito além. Em Xangai, o distrito de Pudong, há 20 anos uma planície coberta por arrozais, é uma Wall Street quatro vezes maior e com o dobro ou o triplo de arranha-céus. Tanto lá como em Pequim, a transformação urbana é portentosa: pontes, avenidas, túneis, edifícios, lojas, galerias, parques exibem modernidade e prosperidade, um efervescente dinamismo 24 horas ao dia.
Uma riqueza ostensiva, sem complexos, pavoneia-se nos shopping centers e nos hotéis luxuosíssimos, nas gigantescas vitrines que exibem roupas femininas, masculinas, bolsas, joias, relógios, calçados, automóveis, fantasias e loucuras das marcas mais afamadas do mundo.
Há restaurantes por toda parte e todos estão lotados de gente em geral bem vestida e amável, que conversa e come sem largar o celular, espiando de vez em quando ao seu redor, por cima de óculos marca Ray Ban, Ferragamo, Gucci ou Lanvin.
Parece que, desde que Deng Xiaoping lançou o lema "Enriquecer é glorioso!", 1,4 bilhão de chineses começaram a produzir e a ganhar dinheiro de maneira frenética. Será que esse é mesmo um país marxista-leninista?
Seguramente é, mais do que nunca, segundo o Partido Comunista, que comemora seu 90.º aniversário de maneira colossal, com homenagens incessantes a Mao Tsé-tung. E, embora com suas delirantes políticas o líder tenha mergulhado a China em miséria atroz e sacrificado milhões de pobres, o país vive agora uma etapa de abundância graças às reformas e à política "socialista" de mercado que a transformaram na segunda potência depois dos EUA.
Num futuro próximo, a China desembocará na sociedade perfeita, onde reinará a justiça distributiva e todos receberão o que pedem, segundo as próprias necessidades, e então a utopia coletivista igualitária se tornará realidade.
Por enquanto, a sociedade chinesa é a mais desigual do mundo, porque as diferenças entre os que têm mais e os que têm menos superam as de qualquer outro país, embora, provavelmente, a China seja o único em que, por decisão do próprio Comitê Central, o Partido Comunista aceita agora entre sua militância até bilionários.
Se vocês detectarem contradições e mistérios ideológicos, leiam o interessante livro de Eugenio Bregolat, La segunda revolución china, no qual o experiente diplomata espanhol e profundo conhecedor do país, onde viveu muitos anos, explica com fartura de detalhes e divertidos episódios, a extraordinária conversão econômica da China realizada em meio a tropeços, intrigas, retrocessos e tanto derrotas quanto vitórias, por Deng Xiaoping.
Esse antigo companheiro e adversário de Mao, sintetizando seu objetivo com outra de suas famosas frases - "Tanto faz o gato ser branco ou preto, o que importa é que pegue os ratos" - foi quem transformou a paupérrima ditadura totalitária, coletivista e estatista erigida por Mao na sociedade capitalista autoritária que tirou da miséria 800 milhões de camponeses e desencadeou crescimento e desenvolvimento vertiginosos, sem precedentes na história.
Bregolat explica que essa insólita variante do socialismo concebida por Deng e seus seguidores, agora no poder, seria incompreensível se não estivesse relacionada à tradição cultural e filosófica chinesa do confucionismo e aos 4 mil anos de história de um país invadido, ocupado e humilhado pelo Ocidente e, finalmente, resgatado pela prosperidade e pela modernização atuais, recuperando o orgulho de si mesmo.
A ideologia socialista é agora uma retórica usada para justificar o monopólio do poder político pelo Partido Comunista. A ideologia real que lançou profundas raízes no país é o nacionalismo. Bregolat está otimista e acredita que o notável progresso econômico levará, mais cedo ou mais tarde, à abertura política, porque as novas classes médias e profissionais, que crescem a cada dia, educam seus filhos no exterior e mantêm um intenso intercâmbio com o mundo mediante as novas tecnologias, exigem cada vez mais a democratização, que se completará de maneira pacífica.
Espero que ele tenha razão e quem não compartilhe totalmente de seu otimismo, como eu, esteja equivocado. Meu pessimismo deve-se ao fato de que, além do nacionalismo, o que aparentemente se tornou uma segunda natureza para boa parte da sociedade chinesa é um materialismo consumista, em que a concentração obsessiva da ação humana na criação de riquezas embota a vida espiritual e intelectual e empobrece o idealismo, a solidariedade e a generosidade.
Embora, por razões óbvias, nas minhas conversas com intelectuais, acadêmicos e escritores chineses, eu tenha sido prudente, me abstendo de perguntas impertinentes, ouvi de muitos deles queixas sobre pouco ou nenhum interesse que os jovens demonstram - principalmente os de melhor formação - pela vida cívica, a cultura e, em geral, por tudo o que seja desinteressado e espiritual, como filosofia, arte ou religião. Todos parecem obcecados por uma boa formação técnica e profissional que lhes abra as portas das grandes transnacionais e seus salários fabulosos ou para postos administrativos no país, agora magnificamente remunerados.
Outra das célebres frases de Deng foi: "Se abrirmos a janela junto ao ar fresco, entrarão as moscas." Imagino que ele a tenha pronunciado na primavera de 1989, pouco antes de dar a ordem para o Exército pôr fim às manifestações dos estudantes na Praça da Paz Celestial, provocando a morte de algumas centenas de jovens. A frase resume a filosofia adotada pelo regime. Sim à abertura econômica e social, mas desde que não se questione o controle absoluto exercido sobre a vida política pelo Partido Comunista.
Os que o aceitam podem ter uma margem bastante ampla de liberdade pessoal, viajar para o exterior, usar a internet. E, se forem escritores ou professores, podem conseguir publicações "capitalistas", desde que elas não critiquem a política chinesa. No entanto, não há tolerância pela dissidência. Liu Xiaobo, Ai Weiwei e outros são assediados, vigiados e, quando suas ações têm repercussão no exterior, presos, julgados e sentenciados a penas variáveis.
Ao contrário do que já ocorreu, há poucos fuzilamentos e, geralmente, eles ocorrem por crimes econômicos. Agora, a dissidência leva à prisão, não ao paredão, e, às vezes, somente ao cárcere domiciliar.
A censura moral existe sempre, porém, é mais branda, e, em bancas de jornal, ruas e livrarias, às vezes, é possível descobrir publicações eróticas. Perguntei ao meu editor e a meus tradutores se meus livros foram censurados. Enfaticamente, me asseguraram que não.
O desenvolvimento chinês seria possível com liberdade? Bregolat duvida. Eu quero crer que sim. Por que motivo na China não poderia ocorrer o que já ocorreu nos EUA, na Grã-Bretanha, na França, e agora na Índia, no Brasil e em tantas outras democracias? / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA